Que boa parte dos bolsonaristas não se toque ou não tenha consciência do que aconteceu no regime que o chefão voltou a exaltar, nesse 31 de março, nada mais previsível. Além de haver de tudo, nesse mundo, há de se levar em conta que essa grossa parcela eleitoral, em sua maioria, ou não havia nascido ou estava saindo dos cueiros. O golpe se distancia dela há exatos 58 anos. E uma coisa é ouvir dizer ou ler por cima, outra bem diferente é sentir na pele, na carne, ás vezes até em lugares sobre os quais não se pode sentar ou tocar com rudeza.
Não tem sido escassa a literatura, os testemunhos narrados e documentados por todos os meios de cultivo da nossa história recente. Grande parte desses testemunhos absolutamente isentos ou mesmo de notáveis que formaram à primeira hora nas hostes contrárias ao regime das reformas de base de sentido social, pela primeira vez tentada de cima para baixo.
Mas, se ler não é fácil, mesmo bula, imagine-se pensar, fundamentar uma opinião, que muitas vezes dói a cabeça.
O presidente Bolsonaro, se golpeou a boa fé da direita para ser eleito, não o fez de tanque nas ruas. Soube enganar elegendo-se sete vezes como representante do povo carioca no parlamento de tradições democráticas. Se soube usar uma facada das mais esquisitas para chegar à presidência, torturou-se a si mesmo. Teve a ajudá-lo a campanha cretina de todos os veículos do país, a pretexto do combate à corrupção, e na verdade, por seguir a tradição de não suportar a ascensão da classe baixa, de uma classe que em 1951, com o retorno de Getúlio ao poder, foi tratada pelo jornalista Paulo Duarte, representante da burguesia paulistana, como o “meio milhão de miseráveis (que foi a maioria alcançada) de analfabetos, mendigos, famintos e andrajosos, homens braçais, maus e vingativos, que desceram dos morros embalados pela demagogia populista”.
Setenta anos depois, a reação não seria diferente, embora mais pobre de linguagem, como ouvi de um industrial de produtos alimentares, beneficiado pela ascensão desses “milhões de esmolambados”: “Dinheiro não foi feito para ser dado; dinheiro é para se ganhar, fazer render e guardar”.
Em compensação, ouvi numa banca de bicho do Ponto de Cem Réis: “Essa tal de corrução eles só querem pra eles”.
Afinal, o que pretende comemorar do 31 de março ou do AI-5 de 1968, o presidente Bolsonaro? Poderes totais de repressão? Censura institucionalizada? Intervenção nos estados e municípios? Cassar ministros? Demissão, confisco, tudo submetido aos imperativos da segurança? Fechar o congresso como paga dos 28 anos que passou por lá sem nada aprender? Se temos alguma coisa a comemorar, comemoremos os 54 anos do hino guardado para as horas mais difíceis: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Canto de guerra, nascido da dor, sofridamente preparado e reservado para as horais mais difíceis.