Cumprindo a sina de professor, de ginasianos a pós-graduandos, já ensinei a toda espécie de alunos, e tive turmas as mais variadas. Mas,...

Trovões no guarda-roupa

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Cumprindo a sina de professor, de ginasianos a pós-graduandos, já ensinei a toda espécie de alunos, e tive turmas as mais variadas.

Mas, com certeza, uma das mais divertidas foi a de “Português para estrangeiros” – Portuguese for foreigners — que assumi na UFPB no primeiro mês do ano de 1977.

A convite, fui contratado para lecionar junto ao DLEM (Departamento de Letras Estrangeiras Modernas) e a prioridade era fazer um monte de professores de fora aprender a nossa
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língua o mais rápido possível. Eram todos PhDs, cada um em sua especialidade, de toda parte do planeta (da Índia ao Canadá, da Alemanha às Filipinas) os quais a UFPB estava contratando, na hiper-progressista gestão de Linaldo Cavalcanti, aquela que fez a Universidade crescer 50 anos em 5.

Eu estava acostumado a lecionar português para brasileiros, mas agora a coisa era toda outra. E, confesso, nunca improvisei tanto em toda a minha vida. Na época com trinta anos, eu era, naturalmente o mais novo da turma. É importante frisar a faixa etária dos alunos, porque todo mundo sabe que o aprendizado de uma língua estrangeira é bem mais fácil para crianças que para adultos, mesmo que os adultos sejam PhD.

Uns se saíram bem, outros nem tanto, mas estou consciente de que fiz o que pude, e, não nego, sofri, mas também me diverti um bocado. Acho que eles também. E me permito contar alguns lances engraçados.

Um exercício que sempre fazia com eles era o dos “falsos pares”. São palavras que parecem “casais” (masculino/feminino) e não são, do tipo: caso/casa, porto/porta, luto/luta, fardo/farda, etc. Depois das explicações, cobrava deles frases em que aparecessem os dois falsos casais na mesma construção. E um deles trocou as bolas e a frase saiu assim: “Eu ia pra escola com meu fardo, quando avistei um jumento com sua farda”.

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Depois de uma aula sobre preposições, não era incomum que expressões, por exemplo, como ´bife a cavalo´ se transformassem em ´bife para cavalo´.

Um dia uma americana meio decepcionada reclamou que eu lhe ensinara palavra errada. E lembrou que uma vez usara o termo ´peito´ e eu dissera que era melhor dizer ´busto´. Ora, ela tinha ido ao supermercado à procura de ´busto de frango´ e ninguém lá sabia o que era.

E claro, o aprendizado deles também vinha da rua e era trazido para a classe. Um deles me confessou que gostava muito da expressão 'joia!', muito apropriada ao Brasil, que era um país alegre. Fiquei sem entender, até que matei a charada: ele estava confundindo o nosso ´joia´ com 'joy' ('alegria' em inglês). Quando lhe expliquei o que significava joia, ele protestou, pois o Brasil não era propriamente um país rico.

Um outro me chegou um dia dizendo que tinha comido comida gostosa: 'abacaxera'. Fiquei em dúvida se se tratava de abacaxi ou macaxeira. Só depois de ele me informar que tinha ido ao fogo é que fiquei sabendo que se trata da segunda opção.

Mas, um dos atrapalhos linguísticos mais surreais que lembro foi o daquele senhor alemão que, preocupado, veio me contar que o seu guarda-roupa estava cheio de trovões. Claro, a palavra trocada era ´traças´, mas confesso que viajei um pouco no surrealismo da imagem. Afinal, aqueles trovões domésticos –
agora me dou conta – podiam muito bem metaforizar os sons de uma língua estrangeira que o aprendiz precisasse urgentemente dominar e não conseguisse.

No geral, o tópico gramatical mais difícil para eles (o trovão mais ensurdecedor, digamos) foi o tal do nosso pretérito imperfeito – aquele tempo verbal, inexistente em inglês e outras línguas, que indica uma ação duradoura no passado.

Difícil de aprender e difícil de ensinar. Uma vez, depois de exaustivas aulas seguidas, estávamos em classe quando alguém bateu à porta. Um deles foi atender, e, pensando em algum novato, perguntei: “Quem era?” E ele disse que era engano. Logo em seguida um outro aluno indagou se, ao invés de “Quem era?” (pretérito imperfeito) a pergunta não devia ter sido “Quem foi?” (pretérito perfeito). Pensei, pensei, pensei... e até hoje não sei a resposta. Ou seja, até meu guarda-roupa tem trovões.

Uma ocasião de relaxamento foi o dia em que um senhor indiano, com enorme dificuldade de falar nossa língua, levou para a classe sua filha pequena. Como já residiam no Brasil havia três anos, a garota era fluente em português, e respondia, na ponta da língua, todas as questões que eu levantava. Uma pirralha de nove anos passando a perna em um bando de PhDs – era hilário. Matava todos de rir e, claro, enchia o pai de orgulho. Só não sei se, para a turma, constituía uma esperança, ou desesperança, de sustar os trovões...

Mas, enfim, com essa turma tão atípica fiz boas amizades – algumas duradouras, que até hoje cultivo. Bons tempos aqueles.

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