Aqui na aldeia costuma-se reclamar das ruas estreitas. Diz-se que elas atrapalham o trânsito dos automóveis, que dificultam o estacionamento dos veículos etc etc. Nesse discurso reclamatório aldeão identifica-se de imediato a indisfarçada apologia dos carros, como se eles fossem mais importantes que as pessoas. E o assumido culto das ruas largas, boas para o tráfego das viaturas, mesmo que não o sejam necessariamente para os transeuntes. Veja só. Tudo isso em nome de uma suposta “modernidade” não muito bem definida nem muito bem compreendida pelos aborígenes,
a maioria dos quais ansiosa por copiar modelos norte-americanos nem sempre recomendáveis à nossa cultura, ao nosso clima e à nossa tradição histórica. No mais das vezes, coisa de gente ignorante, certamente, gente deslumbrada com arranha-céus, gente que passa férias em Miami, como se fosse o fino da civilização.
Não que as ruas largas não sejam também importantes, principalmente nas cidades brasileiras mais desenvolvidas, onde o número de veículos seja grande e exija corredores por onde escoar o tráfego, facilitando, portanto, a mobilidade urbana. Não. Apenas que a predominância não seja delas, já que as ruas estreitas são mais condizentes com o calor abrasante de nosso clima tropical, propiciam melhor as sombras protetoras das árvores, casas e edifícios, arejam mais a temperatura, enfim, dão mais conforto térmico e visual aos que nelas transitam.
Tudo isso já era observado, registrado e dito nos idos de 1926 por Gilberto Freyre e seus companheiros subscritores do Manifesto Regionalista desse mesmo ano, documento fundamental da cultura nordestina e brasileira, às vésperas de completar cem anos. Deixemos falar o sábio de Apipucos, que, à época, não era ainda reconhecido como tal nem habitava o antigo bairro recifense: “... O mesmo poderia alguém dizer das velhas ruas estreitas do Nordeste. Bem situadas, são entre nós, superiores não só em pitoresco como em higiene às largas. As ruas largas são necessárias – ninguém diz que não, desde que exigidas pelo tráfego moderno; mas não devem excluir as estreitas”. E continua, sempre no seu estilo tão precocemente pessoal: “Ainda há pouco um estrangeiro viajadíssimo era com que se encantava no Rio de Janeiro: com as velhas ruas estreitas. E não com as largas. Não com avenidas incaracterísticas. Não com as nossas imitações às vezes ridículas de ‘boulevards’ e de ‘broadways’, por onde a gente que anda a pé só falta derreter-se sob o sol forte com que o bom Deus ora nos favorece, ora nos castiga”. E para concluir: “...a uma cidade do trópico, por mais comercial ou industrial que se torne, convém certo número de ruas acolhedoramente estreitas nas quais se conserve a sabedoria dos árabes, antigos donos dos trópicos: a sabedoria de ruas como a Estreita do Rosário ou de becos como o do Cirigado que defendam os homens dos excessos de luz, de sol e de calor ou que os protejam com a doçura das suas sombras”. Eis aí, na estreiteza de ruas seculares ou não, entre outras coisas mais, toda a defesa, em suas raízes mais autênticas, da cultura nordestina e brasileira, herdada principalmente de portugueses e, através destes, dos mouros, uma cultura e uma história que são regionais sem perder o vínculo com a nacionalidade, merecedoras, portanto, de preservação, a fim de que nós, nordestinos, não nos desfiguremos ridiculamente numa civilização sem identidade, civilização esta, com suas ruas largas e seus prédios altos tão iguais, que procura apenas imitar, sem qualquer originalidade e traço próprio, a falta de personalidade de certas metrópoles estrangeiras.
Muitos de nós, pessoenses, quando vão ao centro da urbe ou ao Varadouro e falam mal das nossas congestionadas ruas estreitas, certamente não sabem o porquê daquelas estreitezas aparentemente incômodas. Não sabem que as ruas foram traçadas daquela forma para nos proteger do sol e do calor, seguindo a lição dos árabes e dos portugueses, que assim também fizeram nas cidades e vilas de Portugal, tão acolhedoras. Não sabem o valor cultural desse urbanismo antigo e civilizado, pleno de uma sabedoria que a cada dia perdemos mais, se é que ainda resta algum resíduo dela.
Muito disso tudo se deve, reconheçamos, ao nosso cego, subdesenvolvido e acrítico culto à “civilização do automóvel”, nós que estamos tão mal acostumados a só andar de carro, até para ir à esquina comprar o pão e a bolacha de cada dia. Por isso não sabemos apreciar a beleza e a comodidade das ruas estreitas, ruas que foram pensadas e feitas para o pedestre, para as caminhadas gostosas, civilizadas e socializantes das pessoas e não para o desfilar contínuo dos veículos agressivos, poluidores e discriminatórios que tanto cultivamos. Em fins da década de 1920, no Recife (e não em Recife), Gilberto Freyre foi muito perseguido e hostilizado pela tosca elite local por defender as manifestações culturais vinculadas às nossas raízes. Achavam que isso era de mau gosto. As panelas de barro, os cachimbos e as alpercatas dos matutos, as figuras de cerâmica, os santos de madeira, os quitutes das negras, a doçaria dos conventos e assim por diante. Ou seja, a autêntica cultura popular nordestina, tão nossa, à qual ele dedicaria o melhor de seus estudos e da qual se tornou o maior defensor.
Hoje procuro ver nossas ruas estreitas com esse olhar freyriano. Posso até não achar vaga para estacionar, mas não reclamo. Agora compreendo-as, e compreendendo, procuro apreciá-las, com o mesmo gosto com que contemplo, admirado e grato, uma antiga casa preservada.