Quando o escritor português José Saramago lançou o “Memorial do Convento”, um dos seus livros mais elogiados, muitos leitores se depararam pela primeira vez com o nome do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão. Nascido na vila de Santos, em São Paulo, o padre Bartolomeu de Gusmão, em 1705, teve o seu primeiro invento registrado pela história: um sistema de bombeamento de água para o seminário dos jesuítas em Cachoeira, na Bahia.
Quatro anos depois, já tendo se transferido para Portugal, o padre Bartolomeu de Gusmão requeria do rei português a autorização para um invento que ele desenvolvera para “andar no ar da mesma sorte que pela terra e pelo mar, e com maior brevidade”. Os pasquins lisboetas deram à engenhoca criada pelo padre o nome de “Passarola” e ele ficou conhecido como o “Padre Voador”. E foi assim que o seu personagem e o episódio referente ao artefato voador por ele criado entraram na obra magistral de Saramago.
A “Passarola” do “Padre Voador” foi mostrada, em abril de 1709, no Paço da Ribeira, em Lisboa, na presença do monarca lusitano e de seus principais cortesãos e antecedeu de cerca de oito décadas às experiências dos irmãos Montgolfier, que são comumente consideradas como os primeiros experimentos da aviação. O invento do padre Bartolomeu de Gusmão, apesar da demonstração feita na presença de uma corte europeia e de ter sido devidamente documentado, ficou praticamente esquecido, ao ponto de precisar ser rememorado por uma obra de ficção.
Se o invento inovador do padre Bartolomeu de Gusmão teve essa sorte, o que poderia se imaginar de uma experiência similar, que ocorreu alguns anos depois da “Passarola”, uma tentativa aeronáutica empírica que aconteceu no litoral da Paraíba, com poucos presentes, dos quais alguns eram, certamente, nativos da nação Potiguara, habitantes da região?
O episódio ocorrido na costa paraibana e o seu protagonista, pela relevância que tiveram na Capitania da Paraíba na primeira metade do século 18, mereceram o registro do frade D. Domingos do Loreto Couto na sua obra “Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco”. Loreto Couto, nascido no Recife, foi um frade franciscano que depois se transferiu para a ordem de São Bento. O manuscrito “Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco”, datado de 1759, no conceito do historiador José Honório Rodrigues “é obra indispensável para o conhecimento do Nordeste até o século XVIII e se baseia em documentos e na tradição oral”.
D. Domingos do Loreto Couto, no capítulo da sua obra que tem por título “Dos que pela sua rara habilidade sem ter mestres, de quem aprendessem forão insignes em alguas artes”, dá notícia de um notável paraibano que, naquela época, desenvolveu as múltiplas artes do seu gênio na povoação de Mamanguape, então pertencente ao Termo de Monte-mór, que antes se chamava “Aldeia da Priguiça”:
“Marcos Barbosa natural e morador da freguesia de Mamanguape na província da Parahyba, teve por pays Luiz Pereira Barbosa, e sua mulher Cicilia Gomes. É ornado de agudo engenho, e incrivel industria, nascendo, e vivendo em hum lugar, onde não há escolas, e que se ensinem as sciencias, nem mestres, com quem os naturaes aprendão as artes, sendo discipulo de si mesmo he insigne gramatico, e excellente musico, e tangedor de instrumentos, sendo-lhe connaturaes as faculdades, e virtudes operativas, não so imita com perfeição as obras que outros inventarão, senão com novos inventos lhes dar maior excellencia. Fez um instrumento de corda, que forma diverso som dos antigo, muito suavel, e agradavel aos ouvidos”.
“Com especialissima perspicacia achou a arte de voar, o que fez muitas vezes, com admiração dos circunstantes. Representou-se a certo indio facil aquelle impossivel, e barboleta inquieta, que ordinariamente queima as azas na chama, da qual se namora, para sua ruina deu quanto tinha pelas azas, e armando-se em qualidade de passaro, subio a hú monte de donde lançando-se aos ares, os cortou veloz, mas não sabendo, ou não podendo suspender o voo, passou para a parte do mar, que lhe ficava vizinho, e fez vedadeiro o que de Icaro fabulizão os poetas”.
“Oliverio de Malmesbury, de quem João Pitseo refere que alcançou a mesma arte, affirma que o não conseguira com tanta facilidade que passasse de cento e vinte passos, e Marcos Barbosa estendia o voo a incriveis distancias, o que nenhum outro homem conseguiu, cuja destreza foy vista, e admirada por muitas testemunhas, que ainda hoje existem”.
“Com especialissima perspicacia achou a arte de voar, o que fez muitas vezes, com admiração dos circunstantes. Representou-se a certo indio facil aquelle impossivel, e barboleta inquieta, que ordinariamente queima as azas na chama, da qual se namora, para sua ruina deu quanto tinha pelas azas, e armando-se em qualidade de passaro, subio a hú monte de donde lançando-se aos ares, os cortou veloz, mas não sabendo, ou não podendo suspender o voo, passou para a parte do mar, que lhe ficava vizinho, e fez vedadeiro o que de Icaro fabulizão os poetas”.
“Oliverio de Malmesbury, de quem João Pitseo refere que alcançou a mesma arte, affirma que o não conseguira com tanta facilidade que passasse de cento e vinte passos, e Marcos Barbosa estendia o voo a incriveis distancias, o que nenhum outro homem conseguiu, cuja destreza foy vista, e admirada por muitas testemunhas, que ainda hoje existem”.
Da mesma forma que aconteceu com o padre Bartolomeu de Gusmão em Portugal, as façanhas e feitos de Marcos Barbosa em Mamanguape ficariam inteiramente esquecidos, se não fossem as lembranças de dois beneméritos historiadores paraibanos. Em 1910, Coriolano de Medeiros, escreveu:
“Mais ou menos na mesma epoca em que o Padre Gusmão cuidava da Passarola, num recanto do mundo, onde só a longos espaços chegavam notícias da metropole, onde a civilização mal acabara de chegar, um homem sem ambições, nem vaidade, para divirtir os que lhe eram vizinhos, fendia os ares, plainava as alturas, rasava sobre as copas dos mais altos arvoredos, como um passaro monstro, enamorado da opulencia da natureza virgem que lhe sorria. Nessa epoca a nascente cidade de Mamanguape sahia, a ceu aberto, contemplando ao lado dos caboclos, admirada e risonha, um homem que voava!”
“Pesem a affirmativa do historiador (D. Domingos do Loreto Couto) que foi quase contemporaneo do genial mamanguapense, e respondam se o seu nome não deve tambem occupar uma pagina na historia dos homens celebres e se na Parahyba não devia tambem alguma coisa existir que lembrasse aos posteros, ou que apontasse ao visitante, esta, sobre todos os pontos digna gloria de nossa terra!”.
“Pesem a affirmativa do historiador (D. Domingos do Loreto Couto) que foi quase contemporaneo do genial mamanguapense, e respondam se o seu nome não deve tambem occupar uma pagina na historia dos homens celebres e se na Parahyba não devia tambem alguma coisa existir que lembrasse aos posteros, ou que apontasse ao visitante, esta, sobre todos os pontos digna gloria de nossa terra!”.
Coriolano de Medeiros, também incluiu Marcos Barbosa no tópico referente à Mamanguape no seu “Dicionário Corográfico do Estado da Paraíba”:
“Homens notáveis – Mamanguape tem sido berço de homens que se notabilizaram. Em mecânica, apresenta Marcos Barbosa, coevo de Bartolomeu Bueno de Gusmão e inventor de uma máquina individual para voar”.
Outro benemérito da historiografia paraibana, Celso Mariz, em artigo publicado em 1920, também reverenciou o genial mamanguapense:
“Intelligencia illuminada tivemos, ao começar o seculo XVIII, o caso singular de Marcos Barbosa. Nascido e criado em Mamanguape, autodidata, artista, inventor e grammatico, esse é seu nome no murmurio das cronicas coloniaes. Segundo estas, Marcos voou a fundas alturas num apparelho de sua creação. Desconhecido precursor da nautica aerea, foi ainda inventor de um instrumento musical de cordas e mestre da lingua portugueza. Mas não deixou além da fama, aliás registada em idoneo documento contemporaneo, os productos vivos por onde se pesasse ainda hoje a resistencia e grandeza de seu valor”.
Depois dessas referências que foram feitas ao seu nome por Coriolano de Medeiros e por Celso Mariz, Marcos Barbosa foi esquecido e raramente é citado. Apesar da sua genialidade, reconhecida pelos seus contemporâneos, considerando que os registros históricos disponíveis o colocam como o primeiro inventor da Paraíba, Marcos Barbosa é desconhecido pela grande maioria dos paraibanos.