Quando a gente tinha tempo… Meus olhos não tinham pressa.
Minha cidade era pequena, tinha carroças puxadas por cavalos, mulheres equilibrando trouxa de roupa na cabeça, quintais com frutas, cachorros nas ruas, quitanda com viveiro de galinhas na porta, ruas de paralelepípedos e uma ingenuidade que só as “cidades-criança” têm.
Sentado sem camisa e descalço na porta da sapataria eu esperava para pedir um pedaço de couro pra fazer atiradeira.
Enquanto aguardava a “brecha” eu olhava o Davi, filho do Sr. Antônio, encerar fios de algodão para facilitar a costura dos sapatos, ele passava várias vezes a linha numa bola de cera formando sulcos profundos que eu achava parecidos com as rugas do sô Antônio.
A sapataria era numa garagem pequena, sem janelas, sem ventilação e a porta de metal enrolava até o teto.
Tinham teias de aranha, “folhinha” de calendário na parede, retalhos de couro numa caixa de papelão, pedaços de pneus e um cheiro fortíssimo de cola.
Havia uma mesinha baixa, bem robusta, encrustada de cola seca e cheia de marcas e cortes.
“Sô Antônio” era de poucas palavras, meio rabugento e levava o trabalho muito a sério. Usava uma técnica peculiar para cortar a borracha das solas. Sentado num banquinho ele prendia o sapato entre as pernas e usando as duas mãos puxava o estilete em direção ao tórax, tirando finas camadas da borracha até nivelar, ficava tão concentrado que a língua saia do lado da boca, igual criança aprendendo a colorir.
Num intervalo entre um sapato e outro ele olhava sisudo por cima dos óculos e com cara de poucos amigos me perguntava: Você está querendo “coro”, menino? Eu respondia que sim, e ele ria.
E reforçava a pergunta: "é coro mesmo que você está precisando?”
— Sim, pra fazer “tiradeira”. Todos riam e eu não entendia.
Ele se erguia devagar devido ao longo tempo encurvado na mesma posição, pegava um retalho de couro e numa destreza incrível recortava com o estilete do jeitinho que eu precisava e ainda fazia os furos nas extremidades.
Ele entregava o couro sem me olhar, estendia o braço pra trás e voltava imediatamente ao trabalho. Eu agradecia e do lado de fora ainda ouvia ele resmungar que o couro estava cada dia mais caro.
Nessa época em que a gente tinha tempo de se debruçar na ponte pra ver o rio, jogar birosca “à vera”, soltar papagaio, brincar com a atiradeira, pescar e fazer fogueira à noite, nosso relógio era o relógio do “Menino Maluquinho”, filho do Ziraldo, com muito mais horas.
A medida que fomos crescendo, eu, meus amigos e minha cidade, fomos ficando sérios. Nos ensinaram a contar as horas e esquecendo as sapatarias, as quitandas, as lavadeiras, as carroças, os pés de manga, o campinho de futebol e principalmente, alegria leve e ingênua de brincar com o tempo.