I
Vai, vai, vai, começar a brincadeira,
Tem charanga tocando a noite inteira.
Vem, vem, ver o circo de verdade,
Tem, tem, tem picadeiro e qualidade.
(Sidney Miller )
Muito tempo faz que não sei de Nequinho. Nunca uma carta, um telegrama, uma notícia qualquer. Nada. Se eu soubesse alguma coisa do paradeiro dele, uma referência qualquer, iria procurar por ele, arrancar de dentro de mim esse pedido de perdão engasgado por quase trinta anos. Só queria que ele me escutasse, uma chance apenas para que eu pudesse pelo menos tentar explicar aquela decisão que transtornou irrecuperavelmente minha vida.
Nequinho devia saber que eu gostava dele, que tudo aquilo aconteceu porque não tinha jeito. Não tive como evitar. Era muita pressão na minha cabeça e fiz aquela escolha pensando nele, nas coisas que eu precisava comprar para ele, nos cadernos, na cartilha, no lápis de cor, na pasta de couro, no sapato novo...Pensando também na falação de Nazaré.
Nazaré era um tormento. Sempre daquele jeito: cobrando! Não dava folga um minuto. Todo instante aquela ladainha me cozinhando o juízo, me chamando toda hora de desmiolado, cobrando responsabilidades com a vida e se eu não podia criar não devia ter posto filho no mundo. De tudo o que ela falava era isso o que mais me doía, porque ela sabia quanto eu gostava de Nequinho. Ele era tudo para mim, tudo de bom que Deus tinha me dado. Sabia do orgulho meu por aquele menino. Novinho de tudo e já entrando para o Grupo Escolar, sabendo as quatro operações, escrevendo e lendo que era uma beleza. Como eu gostava de Nequinho!...
Nazaré não podia falar comigo daquele jeito na frente do menino. Sabia das minhas dificuldades. Eu já tinha feito ficha num monte de lugares. Ficavam de me chamar e nada. Eu era bom na datilografia, na conferência de estoque, no almoxarifado, dava minhas pedradas na contabilidade, mas estava pronto para topar qualquer serviço. Eu era capaz até de aceitar uma portaria, os serviços gerais... Na situação que eu estava o que Deus me mandasse ia estar de bom tamanho.
A vida tem dessas crueldades. Dessas violências com a gente. O homem sem colocação fica sem amor pelas coisas, não tem vontade de viver e tem que passar vergonha calado, ouvir coisas da mulher e não poder reagir. Desempregado não tem razão em coisa alguma, nem em arenga de bar.
Dinheiro, seu Arthur mandava para as necessidades. Mandava mais discurso do que dinheiro. Tinha sempre de lembrar Nazaré que fora contra aquele casamento, tinha falado, falado...E do que tinha adiantado?...De nada! Nadinha! Era muito desgosto ver a filha naquela situação, passando necessidades enquanto aquele imprestável, o mais que fazia era escrever. Escrever?! Assinar uns artiguinhos para o Valeparaibano. Aquilo trazia feijão para a casa? Não. Claro que não. Quem iria arrumar colocação para um sujeito que ficava falando o que bem entendia no jornal, escrevendo contra gente poderosa, ainda mais com aquelas ideias de comunista na cabeça...Onde já se viu? Homem de bem tem carteira assinada com carimbo de firma boa. De que adianta aquele monte de livros na estante? Sabedoria sem diploma? Pra quê?
Definitivamente estavam por aqui comigo, com tudo que era meu: com minhas leituras, com meus escritos, que sempre diziam, não serviam para nada.
É certo que eu tinha lá minhas veleidades novelescas. Escrevia um tiquinho. Uns contos na gaveta da cômoda podiam atestar a qualidade de minha lavra, que eu acho, não era das piores.
Poesias? Algumas. Para Nazaré em tempos de flerte nos bailes da Associação Esportiva e só. Nem preciso contar o quanto me arrependo daqueles alexandrinos, tirados aqui de dentro madrugadas afora.
Fazer o quê? Saí dessas pessoas que não se encaixam na vida, que não farejam oportunidades. É como diria minha tia Lupercina: “Homem que não se presta para cuidar de seus centavos, nunca vai ter seus milhões para contar”. E é uma verdade. O que eu gostava mesmo não dava dinheiro, nem posição na vida, nem nunca soube de alguém ter acumulado fortuna devorando Eças e Machados, muito menos discutindo política na farmácia do Bartolo.
Nazaré sempre falava: Tanta coisa na cabeça e nada na panela. Hoje reconheço minha falta de empenho, meu apego à certos princípios. Ingênuos, admito, mas me eram caros e não mereciam desmoronar naqueles segundos. Tudo por causa daquele maldito circo que foi aparece lá na Vila Maria. Não dá para me conformar. Em que hora aquela trupe ruidosa foi me aparecer?! Eu ainda me refazendo de uma tosse comprida e sem uma pataca no bolso. Se bem que estivesse esperando umas quireras do Alcides por conta da corretagem de uns terrenos que ele vendeu em Santo Antônio do Pinhal. O dinheiro era pouco, mas era meu. Só que não chegava. Passa aqui amanhã, vem depois de amanhã, passa semana que vem, e assim por diante. Alcides estava me dando canseira e Nazaré ali, na marcação, no rosário de sempre, que eu não prestava para fazer negócios, que Alcides ia me passar a perna. Cadê as promissórias? Tudo na conversa, é Seu Moço? E palavra vale alguma coisa hoje em dia? Claro que não. Só “Seu Moço” não sabe disso.
II
Corre, corre, minha gente
Que é preciso ser esperto
Vê melhor que vê na frente,
Vê melhor quem vê de perto.
(SM)E o circo chegando. Espalhafatoso como se cabe a um circo de qualidade, de lona boa e bailarinas bonitas.. Desfile na rua XV de Novembro com palhaço na perna de pau distribuindo confeitos a um batalhão de meninos extasiados. O homem no megafone fingia sotaque carcamano e anunciava a estreia. As carretas, as jaulas, os mistérios. Sim, os mistérios.
— Pai aquele “trigue” come gente?
— Come, Nequinho. Come que não fala direito, que fala trigue, que fala vrido.
— Mas come, não come?
— Come.
O corso seguia lento desfilando novidades, o mágico, o macaco equilibrista, o leão que também comia gente, o elefante que só comia plantas.
— Se o elefante só come plantas, então por que ele é gordo?
— É que o metabolismo dele é diferente do da gente.
- Ah!...
— Entendeu?
— Não.
Quando do meu tempo de pequeno ninguém dizia vou ao circo, dizia-se vou aos cavalinhos. Não importa, circo ou cavalinhos, ele vem para mexer com a alma da gente, com nosso imaginário e arranca aqui de dentro aquela alegria adormecida, e o faz tão misteriosamente quanto seus mágicos tiram o inesperado de suas cartolas negras, como também tirei a alma de Nequinho de dentro da minha.
Ele era dessas crianças de choro e riso fáceis, de emoções afloradas, capaz de perceber coisas que fogem ao senso comum. Horas e horas na horta acompanhando o milagre da semeadura, da colheita, espreitando o voo dos sanhaçus , até que um ferido de estilingue reclamasse seus cuidados de esculápio. Gostava de sentar ao meu colo e ouvir os causos de onça, da sucuri desse tamanhão que engolia até gente.
— Pai, sabe qual é o bicho mais bravo que existe?
— O leão;
— Não.
— Então, qual?
— O diabo da Tasmânia. Olha aqui no livro a cara dele.
_Ah!
— Pai, me leva no circo?
— Ao circo.
— Tá bom, me leva ao circo?
— Se Alcides me pagar, eu levo.
— E quando o Alcides vai pagar? A mãe disse que ele não paga ninguém e não vai pagar o senhor.
— Claro que vai pagar. Deixa de ser igual a sua mãe. Se eu disse que ele vai pagar é porque ele vai pagar e não se fala mais nisso.
Dentro de mim algo me dizia que o Alcides não ia me pagar. Pelo menos com a premência que os pedidos de Nequinho exigiam e cobravam. Não havia a menor chance. Mas, dentro de mim algo também me dizia que eu tinha de dar um jeito de levar meu filho ao circo, fazer a vontade dele, já que tantas outras eu estava devendo. Ele não era de pedir coisas, não era um menino cheio de exigências, mas esse pedido era diferente, fazia os olhinhos dele brilharem, como brilham os olhos de todos os meninos quando sabem que o circo está por perto.
III
Mas no meio da folia
Noite alta, céu aberto,
Sopra o vento que protesta,
Lá no teto rompe a lona
Pra que a lua de carona
Também possa ver a festa.
(SM)Farmácia do Bartolo. Era ali que me encontrava com Luís Pastinha, com Adegildo, com Agenor e mais uns três ou quatro contendores de somenos para as sessões de um parlamento informal que tínhamos organizado à porta daquela botica. Já encerrávamos a pauta bravateando sobre alguns temas que seriam capazes de causar arrepios em quepes e coturnos quando Crispim chegou trazendo a novidade do circo.
— Estão contratando gente pra vigiar e não deixar entrar penetra. Pagam mil por dia. Mil cruzeiros. Deus me livre disso. Ficar embaixo da arquibancada pastoreando os moleques que querem passar por baixo da lona, mandando o porrete nas canelas,,,
Contratando gente!...Poderia ser a minha saída! Mas era o fim da picada eu trabalhar em um circo. No mínimo ia ter que vestir uns daqueles macacões cor de abóbora, ficar de porrete na mão fazendo a ronda em volta do circo. E o boné, hein? Já pensou? Com reclame da Coca-Cola... Talvez me dessem um apito para requisitar ajuda quando um intruso fosse mais ligeiro do que eu e burlasse minha vigilância. Que não me pusessem para tomar conta de carro, que isso eu não topava por dinheiro nenhum no mundo. Dinheiro nenhum! O que é o destino...Nazaré é quem tem razão, eu não sei mesmo me encaixar na vida. Agora aqui sonhando com um trabalho esporádico, por alguns trocados só para levar Nequinho ao circo. Por ele, só por ele, eu seria capaz de me sujeitar a um emprego desse, mas que ele não me visse em um macacão cor de abóbora, que Nazaré o levasse e nem passasse por perto de mim. De jeito Nenhum. Queria que Nequinho lembrasse sempre de mim de outra maneira, ou pelo menos vestido decentemente, contando a história de Teseu matando o Minotauro. Era a história que ele mais gostava.
IV
Bem me lembro, o trapezista
Que mortal era seu salto,
Balançando lá no alto
Parecia de brinquedo.
Mas fazia tanto medo
Que o Zezinho do trombone
De renome consagrado
Esquecia o próprio nome
E abraçava o microfone
Pra tocar o seu dobrado.
(SM)— Boa noite, gostaria de falar com o encarregado.
— Tá ali. É seu Petrônio, aquele gordo mal encarado. Seu Petrônio estava ali, gordo e mal encarado, numa grande barraca de lona com laterais abertas à ventilação, olhando um rapazola ocupado em jogar silagem para uma meia dúzia de camelos que regurgitavam uma baba branca e pegajosa.
— Seu Petrônio?
— Eu.
— Fiquei sabendo que a companhia está admitindo para serviços temporários.
— Admitindo e demitindo. O que é que o senhor sabe fazer? Não vai me dizer que é artista!? Se for é com o Reginaldo, eu só contrato o pessoal do pesado, a turma do trampo, entendeu?
— Entendi. É isso mesmo que eu estou procurando. Qualquer coisa, menos tomar conta de carro. Vigilância, limpeza, qualquer coisa mesmo.
— “Qualquer coisa” não é serviço. Vamos, homem, estou precisando de pessoal pra vigia. Trabalho só na hora do espetáculo, duas vezes por dia de segunda à sexta, e três vezes no sábado e domingo. Pago mil por dia. Bufunfa viva no final de semana. Nada de carteira assinada, nada de desconto e reclamação é com o bispo. Aceita?
— Aceito. Quando começo?
— No sábado. Meio dia aqui que eu vou dar as instruções. Já vou adiantando que não aceito atrasos e não gosto de dar oportunidades a quem não honra seus compromissos. Vamos ficar por aqui duas semanas, talvez três se tivermos casa cheia. Não precisa trazer documentos, nem outra coisa porque já quero deixar bem claro que não vamos assinar carteira. Tá entendido? Estamos conversados?
Foi assim que dei início à minha tragédia, ainda que não possa negar, um certo entusiasmo andou rondando minhas perspectivas, pois minha aritmética totalizava um saldo otimista. Aqueles trocados poderiam aliviar algumas premências e me permitiriam mais à frente presentear Nequinho com um bilhete, mesmo que este fosse para a geral, para ele e Nazaré, é claro! Pensei na bagatela de uns quinze mil cruzeiros, um tanto mais, um tanto menos, mas que meu filho nunca, nunca mesmo, soubesse da origem daqueles proventos. Eu queria mesmo é depois saber de Nequinho o que ele teria achado da função vesperal, módica no preço, mas não menos encantadora do que as noturnas. Certamente. O que ele teria achado do trapezista, do malabarista, do homem que engolia uma espada e vomitava labaredas. O que achara das atrações todas e tantas, que iriam por certo fazer sorrir o coração do meu principezinho. Nequinho merecia!
V
Faço verso pro palhaço,
Que na vida já foi tudo,
Foi soldado, carpinteiro,
Seresteiro vagabundo.
Sem juiz e sem juízo,
Fez feliz a todo mundo,
Mas no fundo não sabia
Que em seu rosto coloria
Todo encanto do sorriso,
Que seu povo não sorria.
(SM)Sábado e eu lá, onze e meia esperando o encarregado, o gordo Petrônio, eu e mais uma dúzia de desempregados. É nessas horas, principalmente nessas horas, que é possível perceber como os desempregados são parecidos, de cara e de sentimentos e é possível ver como a exclusão nos torna iguais, nos alija da ternura e a face mais contida de nossos espíritos perde completamente os escrúpulos e se reveste de toda crueldade que possa caber no coração de um homem. Eu estava ali para, em troca daqueles honorários, permitir que me aflorasse esse lado obscuro de minha alma.
Não tardou chegar o encarregado, a passar ordens e recomendações, distribuir tarefas exercer aos brados sua autoridade de capataz. A minha tarefa seria aquela mesma: não permitir a presença de gente tentando passar embaixo da lona.
— Olha aqui. Esse porrete é de jacarandá. Se algum penetra insistir, mande o porrete na canela. Só na canela. Não vá me bater em outro lugar. Na canela do indivíduo, mas com gosto. Com gosto! Se eu pegar alguém dando moleza, tentando levar na conversa, eu mando embora. Quero gente de tutano. O senhor está entendendo? – e olhou para mim desconfiado de que eu não fosse capaz das minhas funções de feitoria.
E eu não era. E o gordo Petrônio continuou.
— Quem for para a limpeza pega o macacão azul, alimentar os animais, o verde- não era possível que minhas premonições fossem acontecer – O senhor aí da vigilância pega o macacão cor de abóbora.
O macacão cor de abóbora. Aquilo parecia um pesadelo. Logo eu ali com aquele embrulho indigesto à mão. O macacão e o boné! Pelo menos no boné não tinha reclame da Coca-Cola.
— Uma e meia todo mundo aqui – e me entregou um apito, desses de juiz de futebol. Não ia faltar o apito, claro que não!
Fomos embora. Éramos, fui contabilizar mais tarde, uns quinze. Gente que ia alimentar aquela fauna exótica, outros que iam servir de ajudantes no picadeiro, estes talvez os mais atarefados, pois entre um número e outro, deveriam colocar e retirar uma parafernália de objetos enquanto o apresentador anunciava a próxima atração. Usavam macacões cinza. Discretos. E nas outras funções, e macacões de outras cores, mas nenhum cor de abóbora.
VI
De chicote e cara feia
Domador fica mais forte
Meia volta, volta e meia,
Meia vida, meia morte.
Terminado o seu batente
De repente a fera some,
Domador que era valente
Noutras feras se consome,
Seu amor indiferente,
Sua vida, sua fome.
(SM)Foi muito difícil começar a conversar com Nazaré, explicar o biscate que eu havia arrumado. Falei muito por cima, que aquilo iria render uns trocados, iria dar para pagar umas contas, daria também para comprar algumas coisas que estavam faltando para o Nequinho na escola, principalmente a pasta de couro que ele sempre quis. Acho que foi a primeira vez em muitos anos que Nazaré me foi solidária, acho mesmo que se comoveu com meu esforço, com minha humilhação. Não conseguiu esconder as lágrimas que caíram de seus olhos sempre tão desconfiados de mim, e que agora pareciam tristes e desanimados com a vida. Expliquei que dali a uma semana iria receber aquele dinheiro, o que recebesse iria deixar na mão dela e que dele ela fizesse o melhor uso. Eu mesmo não queria nada para mim, só fazia mesmo questão que ela comprasse a pasta de couro de Nequinho e o levasse à matinê de domingo.
Nazaré entendeu. Pela primeira vez, depois de tanto tempo não reclamou de um pedido meu. Seu perdão, tão cansado de me perdoar abriu uma trégua. Foi quando percebi alguns vestígios de ternura no olhar de minha mulher. Eram-me bastantes, já que deles eu me desacostumara. Parcimoniosa em seus afetos comigo, só comentou que Nequinho não falava em outra coisa, era circo pra cá, circo pra lá. Não dava folga um minuto, que era preciso eu falar com ele. E que se ela fosse levá-lo, que eu lhe dissesse quando, que não aguentava mais o menino no rabo da saia falando em circo o dia todo daquele jeito.
_Nequinho, vem cá.
— O que é?
— Sua mãe vai levar você ao circo. Mas não dá para ser hoje e nem amanhã. Domingo que vem ela leva. O Alcides já terá me pago, então...
— Mas eu quero ir amanhã. Quero ir com o senhor e o Alcides não vai pagar.
— Se ele não me pagar eu me viro, mas você vai ao circo. Tenha um pouco de paciência. Que diferença faz ir hoje, amanhã, ou domingo que vem? Que diferença faz ir comigo ou sua mãe?
— Faz muita diferença.
— Qual?
— Mãe leva a filha e pai leva o filho. Ir com a mãe não tem graça Só se o pai for junto.
— Mas eu não vou poder. Vou estar trabalhando.
— O senhor? Trabalhando?
— Nequinho! Vou estar trabalhando, sim senhor. Estou lá no jornal. Não disse que uma hora ou outra iriam me contratar? Não disse?
— Disse, mas não acredito.
— Nequinho...Não complica mina vida, facilita as coisas para o seu pai. Você não quer ir ao circo? Pois você vai. Agora tenha um pouco de paciência. Só isso que estou lhe pedindo. Vai dar para ser?
— Não!
— Vai dar sim senhor, e as coisas não podem ser sempre do jeito que você quer. Entendeu?
— Mais ou menos.
Nequinho não entendeu. Ele queria mesmo era ir comigo, dividir com o pai as emoções que só momentos mágicos como os de uma função circense podem proporcionar. É difícil alguém entender desses sentimentos que aproximam almas como a minha e a de Nequinho. E exatamente por isso é penoso explicar o que passou comigo depois daquela conversa. Deus sabe o que senti. Só Ele me viu segurar aquelas lágrimas e aguentar firme, impondo ao coração esconder, o que meus olhos teimavam mostrar.
Assim mesmo tive que impor a Nequinho meus desmandos de pai-patrão.
— O senhor vai domingo com sua mãe e estamos conversados. E no outro domingo e não no próximo. Se ficar aí fazendo birra, aí é que não vai. Nem domingo ou dia algum.
— No domingo eu não quero ir. Quero ir no sábado.
— E que diferença faz?
— Faz muita diferença.
— Qual é essa diferença?
— É que no sábado vai todo mundo da escola. Vai o Dico, vai o Toninho, vai o Tadeu, Vai o Zé da Dona Zuleica...
— E você não vai. O senhor só vai no outro domingo.
- Não. Vou no sábado.
— E com que dinheiro?
— Eu empresto depois a mãe paga. Eu arrumo...
— Arruma? Onde? Com quem?
— Do mesmo jeito que o senhor vai conseguir se o Alcides não...
— Nequinho!!!
VII
Fala o fole da sanfona,
Fala a flauta pequenina,
Que o melhor vai vir agora,
Que desponta a bailarina.
Que seu rosto é de senhora,
Que seu corpo é de menina.
Quem chorava, já não chora.
Quem cantava desafina,
Pois a dança só termina
Quando a noite for embora.
(SM)Comecei meu batente com Seu Petrônio dando suas ordens como as de um sargento veterano. Apontou para mim.
— O setor do poeta é o da esquerda. Vai ter que cobrir dessa estaca até aquela ali na frente. Aquela pintada de vermelho e branco. Passou alguém por esse setor a responsabilidade é sua. Olho vivo, poeta!
Senti um profundo constrangimento com aquela ironia. Poeta? Onde falava-se poeta era para se entender, aluado, ou qualquer adjetivo desse jaez. Senti muita raiva de mim, da vida. Se alguém lá no jornal me visse ali... Nem pensar nisso. Era o fim da picada. Alguém do Partidão... Era hora de começar a minha ronda, meu trabalho de vigilante. Nada de dramas, pensei. Fora uma escolha minha. Como é próprio dos pesadelos aquilo uma hora ia ter que acabar. Agora era deixar por conta do tempo. Não era o momento de buscar comparações no universo das minhas estantes. Frans Kafka não combina com macacão cor de abóbora..
As luzes, o burburinho, o cheiro de pipoca, de algodão doce, de maçã do amor. Circo é um mundo complexo e só estando ali nos bastidores fui entender que depois dos aplausos a bailarina vai vender pequenas lunetas com fotografias coloridas da plateia. Chapas batidas à revelia e sem muita arte pelas mãos ligeiras do trapezista. Quem imaginaria ser o mesmo homem, o atirador de facas e o vendedor de bilhetes na portaria? Passaria pela imaginação de qualquer criatura ser o mal encarado Petrônio o palhaço Tanajura que tão gostosas gargalhadas arrancava das arquibancadas. Definitivamente eu sabia tão pouco do circo quão quase nada o circo sabia de mim. Mas tivemos que rapidamente ir nos acostumando um com o outro. Horas eu fazendo minha patrulha junto às paredes laterais. Atento. Sempre em postura preventiva para evitar as prerrogativas do jacarandá. Noutras horas, sob a arquibancada conforme também determinara o palhaço Tanajura. Ficava eu, pedindo a Deus que alguma tíbia aventureira não aparecesse à minha frente requisitando a ação de minha borduna.
Os dias foram indo embora, e em pouco menos de uma semana apenas uma vez me vi compelido a executar minha tarefa de Torquemada : duas canelas sorrateiras foram se insinuando por uma fresta da lona. Mas bastou um “chispa moleque” e aquelas perninhas desapareceram ligeiras como se fossem as duma gazela cor de betume, toda assustada.
Não queria mesmo é ter de aplicar o corretivo em algum menino que tentasse burlar nossa segurança. É fácil descobrir e não são raros os que arriscam alguns hematomas para descobrir os mistérios da mulher que se transformava em macaco.
EPÍLOGO
Vai, vai, terminar a brincadeira
Que a charanga tocou a noite inteira.
Morre o circo, renasce uma esperança.
Foi-se embora e eu ainda era criança.
(SM)Deuses há para todos quantos deles querem se valer. Eu que nunca fora de acertar em minas escolhas, não seria na de um deus que eu iria me reabilitar. E se um dia dele precisei, reclamei sua ajuda, foi quando provavelmente cochilava. Talvez por isso, na matinê de sábado meu procurador no Olimpo não atendeu o chamado de seu servo aqui e me fez aparecer dois sapatinhos desengraxados, ligeiros, fazendo estripulias no meu setor. Tentava uma fresta, algum desvão entre a lona e o solo para atirar seu corpo pequenino para o outro lado do universo, onde o piscar de luzes coloridas anunciavam que o espetáculo estava para começar. Sob a arquibancada foram muitos os meus “chispa moleque”! E o meninote lépido, atrevido, não atendia do lado de fora. Fazia era correr de um lado para outro, indo e voltando, exigindo na perseguição que eu tivesse fôlego de atleta.
Logo me foi possível perceber que minhas energias já escasseavam e que por pouco tempo eu ainda suportaria aquela perseguição. Então ouvi a voz do palhaço Tanajura. Era Seu Petrônio com o rosto já manchado de maquilagem de arlequim que não camuflava sua alma tirana.
— Manda o porrete, poeta! Ele está indo pra lá. Vai, poeta. Se der moleza não tem pagamento.
Recolhi o que me restava de energia e numa manobra estratégica fui me postar onde mais provavelmente aquele irreverente iria tentar sua invasão. Poucos, muito poucos segundos até que pude ver suas mãozinhas tenras tentando levantar a lona. Mais uma vez o palhaço Tanajura gritou.
— O porrete, poeta!
Ainda pude ver aquelas perninhas franzinas e nelas descarreguei o lado obscuro de minha alma., os prováveis quinze mil cruzeiros, as reclamações de Nazaré, minhas desditas, todas, meu macacão cor de abóbora, os gritos do palhaço Tanajura...
Foi um grito lancinante como jamais ouvirei, viva eu quanto tempo Deus ainda me permita viver. Depois um corpinho se deixando cair entre gemidos. Levantei a lona. Atirei-me para fora e fui debruçar-me sobre aquela criaturinha.
Não tive tempo para concluir meus intentos. Eu conhecia muito bem aquele choro, aquela voz que reclamava em agonia pelo socorro de um ente querido.
Pai! Pai! Pai! ...
Foi a última vez que abracei meu filho. Muita gente chegou para ver o que acontecera. Nem me lembro quem o tomou de meus braços para socorrê-lo. Dali o levaram. Ainda pude ver seus bracinhos estendidos, ouvir suas súplicas sentidas, como não lhe fosse possível entender ser eu o seu algoz.
Ainda reclamava.
Pai! Pai! Pai!...
Sentei-me ao lado de uma estaca e ali chorei tanto quanto se possa imaginar ser um homem capaz de chorar. Não tive coragem de voltar para casa. Depois não tive coragem para muitas coisas em minha vida: coragem de olhar para minha mulher, para meu filho, nem mesmo coragem para arrancar do peito um pedido de perdão que está entalado dentro de mim há mais de trinta anos.