Caminhando pelas ruas do bairro de Bodocongó, como a acostumar o olhar depois de passar tanto tempo privado desses passeios, avisto de lon...

Memórias de circo

Caminhando pelas ruas do bairro de Bodocongó, como a acostumar o olhar depois de passar tanto tempo privado desses passeios, avisto de longe uma tenda com listras em azul e amarelo montada n’um terreno baldio nos limites da Ramada com o Conjunto Severino Cabral. A pandemia me fez um chorão! Tenho me emocionado com tudo e qualquer coisa. Não contendo a emoção, vi aquele monumento grandioso com os olhos da infância, era um dos circos que insistem em perambular pelos lugares, portando aquela alegria genuína, ensinando o mundo que não podemos viver sem sorrir.
Um gradeado quase desforme, uma lona não tão grande assim, um ônibus bem velho, alguns trailers, uma jovem lavando uma roupa brilhosa em uma bacia de alumínio, uns três guris chupando chupeta e com a pitoquinha de fora, mal andavam;
Circoshow
um homem magro escorado no ônibus, cabeça baixa, a escovar os dentes. Em um varal entre duas cordas de sustentação do circo se via maiô, calças coloridas, camisas e tiras. Tudo aquilo exalava simplicidade. Só Deus sabe como sobreviveram esses dois anos tenebrosos. Pelo jeito, “fazendo menino”, tendo em vista a idade daquelas criancinhas. Futura geração circense?

Em um terreno que deu lugar para um condomínio, nas bordas do que hoje é o canal de Bodocongó, de tempos em tempos se instalava um pequeno circo. Certa vez trouxeram um leão, o bichinho era magro e todo “ruído”. Na minha rua, os gatos sumiram, se dizia que os moleques mais travessos trocavam um gato por um ingresso para a alimentação do felino e a indignação de uma tia minha, que criava uma gata amarela e branca, gorda que só ela, e muito bonita. Também sumiu!

Era arretada a chegada. Havia um terreno murado que fizemos um campinho para jogar bola, vizinho onde o circo sempre se instalava. Quando víamos aquela movimentação, o ônibus prateado e vermelho, já era motivo de animação. Um dos meninos ia até o palhaço saber quando ia “ter circo”, eram dois ou três dias e o palhaço dava o ar de sua graça. Um barulho de vozes infantis era prenúncio da festa. Na ponta da rua, uma cena marcante: meninos aos montes seguiam o palhaço e respondiam os motes cantados por ele:

– Hoje tem espetáculo? – Tem, sim senhor. – Às oito e meia da noite? – Tem, sim senhor...

E a canção puxada pelo palhaço, sempre respondida pela criançada:

“Pompeu, Pompeu Tua mãe morreu Benedito Bacural Tá no osso, tá no pau O teu pai toca ‘pife’ E tua mãe no berimbau Pompeu, Pompeu...”

Quanto mais alto a molecada gritava, era garantia de no cortejo de volta para o circo, o palhaço carimbar o braço da gente, uma cortesia de entrada logo mais à noite. E para tomar banho? Não podia!

Como era divertido seguir o palhaço rua à baixo e rua acima. Papai nem dizia nada, já que não podia a toda hora sair da nossa rua. Depois de horas anunciando o espetáculo, o palhaço voltava ao circo e a meninada deixava ele lá na entrada. Batiam palmas e depois a gente apostava carreira para ver quem chegava primeiro na calçada da mercearia de Papai.

Thomas Bruno
Certa vez, em um carro de som, anunciaram a atração, era o lutador ‘Rei Zulu’ que desafiava quem tivesse coragem de lutar o vale-tudo da época. Oito e meia da noite, fomos Papai, o amigo Joel e eu. A primeira pessoa que vejo, antes mesmo que os palhaços, foi o Rei Zulu, um homenzarrão de quase dois metros, negro, fortíssimo, incontáveis músculos, espetáculo. Depois das apresentações, a última atração era o Rei! Ele entra de braços erguidos e todos gritavam: “Rei Zulú, Rei Zulú”. Eu, pequeno, junto a Papai, ficava com um pouco de medo da agitação. E vão chegando os desafiantes. O primeiro, não aguentou dez segundos, o segundo muito menos. Tranquilo, o Rei se acomodou, até que um tal de Naldinho chamou a atenção. Na parte nascente da Feirinha de Bodocongó, tinha a academia de Tourinho.
Igor Leonardo
Era no tempo em que as pessoas iam para fazer musculação, nada dessa historinha de hoje de “treino, treino”. E uma turma frequentava a academia, dentre eles, o Naldinho. No circo, Naldinho entrou sem camisa, com um short preto colado. Fez uma ginga e deu uma canelada na linha de cintura do Rei Zulu, que deu um forte grito. Do “áaaaiiii” emendou um “ahhhhhhh” e com aqueles olhos arregalados, pegou o oponente com um braço no meio das pernas e o outro próximo ao pescoço e o jogou na coluna central (única) do circo, a lona balançou, a luz piscou e todo mundo correu aos gritos: “O circo vai cair...”. Corremos!

Na volta, na calçada da mercearia, Papai narrou para quem quisesse a história e eu só lembro de: “Rei Zulu se achando, levou uma pernada mermo no vazio... quase se lascou! E por pouco o circo não caiu n’agente”. Rei Zulu, que fez fama no Brasil, estava em fim de carreira, mas não parecia aquele leão ruído, apesar de não estar em seus tempos de ventura, lutou até os 63 anos. Parado defronte aquele circo, revivi toda essa história com o coração eivado de saudade.

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