Que mulher bonita e elegante foi Lygia Fagundes Telles, a escritora recentemente falecida. Uma prova viva de que a inteligência e o talento podem perfeitamente conviver com a beleza física, se bem que não frequentemente, é o que a experiência tem mostrado. Justiça divina? Até pode ser. Pois seria justo cumular uma pessoa com tantos predicados? Lygia teve essa sorte. Beleza, inteligência, talento, uma vida aparentemente boa e sem dúvida longeva (cento e três anos). O que mais se pode querer?
Ela escreveu romances apreciados, mas Hildeberto Barbosa Filho afirma que ela foi maior no conto. Que importa? Ela foi grande nas letras. Ganhou o Prêmio Camões em 2005, provavelmente o de maior prestígio no âmbito da língua portuguesa. Uma espécie de Nobel na seara da última flor do Lácio. Que honraria. Foi casada com dois homens importantes: Goffredo Telles Junior, jurista, e Paulo Emílio Salles Gomes, escritor e crítico de cinema. Até nisso ela se distinguiu.
É provável que seu romance mais conhecido pelo grande público seja Ciranda de Pedras, de 1954, que depois virou novela de televisão, com Lucélia Santos e Eva Wilma nos papéis principais, quem lembra? Ali, na telinha, deu-se meu primeiro encontro com a autora, encontro que deve ter sido o de muitos outros futuros leitores dela, imagino. Vê-se, portanto, que a televisão, sempre tão rasteira, quando se esmera e eleva o nível pode servir à educação das massas.
Sua obra de ficção foi reconhecida e consagrada pela crítica e também pelos leitores. Nunca foi best seller, como um Jorge Amado nos seus melhores tempos, por exemplo, mas tornou-se um nome reconhecível e apreciado, pelo menos na faixa dos frequentadores habituais de livrarias, o que, no Brasil inculto, já é muito. De minha parte, simples leitor desarmado de teorias e quejandos, destaco também sua produção em que misturou, com rara habilidade, ficção e memória, reconstituindo (e criando) momentos de sua vida, principalmente a infância e a adolescência, sem falar nos perfis de amigos, muitos deles nomes de proa de nossas letras. Nesse lote, que tanto aprecio, com liberdade incluo: A Disciplina do Amor (1980), Invenção e Memória (2000), Durante Aquele Estranho Chá (2002) e Conspiração de Nuvens (2007). E é dele, desse lote, que destaco alguns trechos a seguir, esperando despertar o apetite de algum leitor ainda não convertido.
Ela conta essa história em Durante Aquele Estranho Chá. Esse chá existiu mesmo e ele foi compartilhado com Mário de Andrade, na São Paulo da juventude da escritora iniciante. Ela tinha escrito alguns contos e enviara para a apreciação de Mário. Ele marcou o chá para dar suas impressões à ansiosa mocinha. Durante a conversa, o crítico lhe falou: “Ouça, o que é mais importante para você, ser considerada mais bonita ou mais inteligente?”. Ela logo respondeu: “Mais inteligente!”. Ele abriu um riso e disse “ah, como eu era bobinha! Livresca e bobinha. A beleza é tão importante, menina. Sei o que estou dizendo, eu que sou um canhão!”. Veja só. O feio Mário de Andrade trocaria todo o seu talento, toda sua literatura por um pouco de beleza física. Humano mistério.
Em A Disciplina do Amor, ela conta: “Mexendo em antigas pastas na tentativa de ordená-las, acabei encontrando o recorte de uma crônica publicada em 1944. É sobre um pequeno livro de contos que escrevi quando cursava a Faculdade de Direito. Diz o cronista: ‘Tem essa jovem páginas que apesar de escritas com pena adestrada, ficaria melhor se fossem da autoria de um barbado. Afetei certo desdém pela crônica mas fiquei felicíssima: escrever um texto que merecia vir da pena de um homem, era o máximo para a garota de boina de 1944. Eu trabalhava, estudava e escolhera dois ofícios nitidamente masculinos: uma feminista inconsciente mas feminista”. Eis a mulher afirmativa brotando da insegura mocinha, prenúncio da grande escritora e personalidade pública que viria a se tornar.
Em Conspiração de Nuvens, referindo-se à morte de Érico Veríssimo, escreveu: Não consegui telefonar à Mafalda Veríssimo, não consegui, só em pensar minha voz ficava bloqueada e o coração se fazia tão pesado – ah, por que a morte me estarrece como se fosse a primeira vez, como se nunca antes? ... A rara morte, quero esclarecer, quatro ou cinco ao longo da minha vida. Com as outras, tudo normal ou quase, o choque. A introspecção com a consolação filosofante. O apego a Deus e aos poucos aquela paciente cristalização da dor, pequenas pedras que vou guardando, de vez em quando tomo uma, sinto-lhe a forma, a cor, e afetuosamente a devolvo ao seu lugar. Mas há certas mortes que me remetem à infância, ao medo das noites escuras que não vão amanhecer”. Belas palavras, mistura bonita de vida e literatura, para Lygia a mesma coisa.
São fragmentos, vimos acima. Pepitas que, por si sós, são capazes de conquistar um leitor, muitos leitores, não importa. Elas estão aí, espalhadas por livrarias e sebos, à disposição de quem quiser. Para Lygia Fagundes Telles, que agora se foi na paz dos seus 103 anos, a glória que fica, eleva, honra e consola chegou merecidamente antes da partida.
Encerro com a autorizada palavra da professora Walnice Nogueira Galvão, da USP: “Lygia pertence a uma linhagem em nossa literatura que vem de Machado de Assis – crítica, velada, expressa no bom português de quem sabe escrever e toma a literatura a sério. Nunca facilitou e nunca se mostrou sujeita a modas ou tendências. Seu lugar na literatura brasileira é da maior dignidade, e ela veio para ficar”. E ficou.
A estas alturas, talvez elevada a dimensões mais plenas, quero crer que ela, em meio a outras descobertas e confirmações, tenha finalmente desvendado a estrutura da bolha de sabão.