Que mulher bonita e elegante foi Lygia Fagundes Telles, a escritora recentemente falecida. Uma prova viva de que a inteligência e o talento podem perfeitamente conviver com a beleza física, se bem que não frequentemente, é o que a experiência tem mostrado. Justiça divina? Até pode ser. Pois seria justo cumular uma pessoa com tantos predicados? Lygia teve essa sorte. Beleza, inteligência, talento, uma vida aparentemente boa e sem dúvida longeva (cento e três anos). O que mais se pode querer?
Lygia Fagundes Telles ▪ 1950s
É provável que seu romance mais conhecido pelo grande público seja Ciranda de Pedras, de 1954, que depois virou novela de televisão, com Lucélia Santos e Eva Wilma nos papéis principais, quem lembra? Ali, na telinha, deu-se meu primeiro encontro com a autora, encontro que deve ter sido o de muitos outros futuros leitores dela, imagino. Vê-se, portanto, que a televisão, sempre tão rasteira, quando se esmera e eleva o nível pode servir à educação das massas.
Sua obra de ficção foi reconhecida e consagrada pela crítica e também pelos leitores. Nunca foi best seller, como um Jorge Amado nos seus melhores tempos, por exemplo, mas tornou-se um nome reconhecível e apreciado, pelo menos na faixa dos frequentadores habituais de livrarias, o que, no Brasil inculto, já é muito. De minha parte, simples leitor desarmado de teorias e quejandos, destaco também sua produção em que misturou, com rara habilidade, ficção e memória, reconstituindo (e criando) momentos de sua vida, principalmente a infância e a adolescência, sem falar nos perfis de amigos, muitos deles nomes de proa de nossas letras. Nesse lote, que tanto aprecio, com liberdade incluo: A Disciplina do Amor (1980), Invenção e Memória (2000), Durante Aquele Estranho Chá (2002) e Conspiração de Nuvens (2007). E é dele, desse lote, que destaco alguns trechos a seguir, esperando despertar o apetite de algum leitor ainda não convertido.
Em A Disciplina do Amor, ela conta: “Mexendo em antigas pastas na tentativa de ordená-las, acabei encontrando o recorte de uma crônica publicada em 1944. É sobre um pequeno livro de contos que escrevi quando cursava a Faculdade de Direito. Diz o cronista: ‘Tem essa jovem páginas que apesar de escritas com pena adestrada, ficaria melhor se fossem da autoria de um barbado. Afetei certo desdém pela crônica mas fiquei felicíssima: escrever um texto que merecia vir da pena de um homem, era o máximo para a garota de boina de 1944. Eu trabalhava, estudava e escolhera dois ofícios nitidamente masculinos: uma feminista inconsciente mas feminista”. Eis a mulher afirmativa brotando da insegura mocinha, prenúncio da grande escritora e personalidade pública que viria a se tornar.
Érico e Malfada Veríssimo, com os filhos Clarissa e Luís Fernando ▪ 1953AN
São fragmentos, vimos acima. Pepitas que, por si sós, são capazes de conquistar um leitor, muitos leitores, não importa. Elas estão aí, espalhadas por livrarias e sebos, à disposição de quem quiser. Para Lygia Fagundes Telles, que agora se foi na paz dos seus 103 anos, a glória que fica, eleva, honra e consola chegou merecidamente antes da partida.
Lygia Fagundes Telles ▪ 1918—2022Div.
A estas alturas, talvez elevada a dimensões mais plenas, quero crer que ela, em meio a outras descobertas e confirmações, tenha finalmente desvendado a estrutura da bolha de sabão.