Dante e Virgílio chegam ao Sétimo Círculo do Inferno, onde é punida a violência, contra si, contra o próximo e contra Deus. Este Círculo é muito complexo e se divide em três Giros. No primeiro Giro, estão os violentos contra pessoas: tiranos, homicidas e salteadores (Canto XII); no segundo Giro, encontram-se os suicidas e os perdulários, violentos contra si próprios (Canto XIII); no terceiro Giro, veem-se os blasfemos, sodomitas e usurários (Cantos XIV, XV e XVI).
Na saída do Sétimo Círculo e ainda no terceiro Giro (Canto XVII), Dante e Virgílio são recebidos por Gerião, a besta mítica, morta por Hércules, em um dos seus doze trabalhos. Gerião vai guiá-los para o Oitavo Círculo, onde se encontram os fraudulentos, de que ele é a alegoria, encarnando a própria fraude. Melhor não poderia ser a sua descrição por Dante (em tradução nossa):
E quella sozza imagine do froda
sen venne, e arrivò la testa e ‘l busto,
ma ‘n su la riva non trasse coda.
La faccia sua era faccia d’uom giusto,
tanto benigna ave adi fuor la pelle,
e d’um serpente tutto l’altro fusto;
due branche avea pilose insin l’ascelle;
lo dosso e ‘l petto e ambedue le coste
dipinti ave adi nodi e di rotelle. \ versos 7-15
Nel vano tutta sua coda guizzava, torcendo in sú la venenosa forca ch’a guisa di scorpion la punta armava. \ versos 25-27
Nel vano tutta sua coda guizzava, torcendo in sú la venenosa forca ch’a guisa di scorpion la punta armava. \ versos 25-27
E aquela torpe imagem da fraude
veio, e puxou a cabeça e o peito,
mas não trouxe a cauda para cima da margem.
a sua face era face de homem justo,
tão benigna por fora havia a feição,
e, muito diversamente, o tronco de uma serpente;
duas garras tinha, peludas, até as axilas;
o dorso e o peito e ambos os flancos
tinha pintados de nós e de rodetas.
No vão toda a sua cauda se contorcia, torcendo para cima o venenoso forcado que à maneira do escorpião armava a ponta.
No vão toda a sua cauda se contorcia, torcendo para cima o venenoso forcado que à maneira do escorpião armava a ponta.
A descrição é excepcional. Gerião, que os representa, aparece com o seu corpo de serpente marchetado em uma variedade de matizes, que nem os Turcos com os desenhos de seus tapetes ou Ariadne, na sua maravilhosa tecelagem, com que afrontou Palas Atena, conseguem imitar. Assim, o poeta consegue nos dar a imagem variegada da fraude, dentre elas, aquela com que os fraudulentos costumam se apresentar: bons moços, com cara de homens justos e de fala melíflua, mas escondendo o aguilhão e o veneno da cauda, como traiçoeiros escorpiões.
A fraude, no dizer de Dante, é mal que se difunde rápido como a peste e é passível de contaminar todo o mundo – “tutto ‘l mondo appuzza!” (Canto XVII, verso 3). Os fraudulentos, por sua vez, em prantos, são condenados ao Flegetonte, um dos rios infernais. Citado na Odisseia (X, 513) como Piriflegetonte (Πυριφλεγέθων), e na Eneida (Phlegethon, VI, 265), nas catabases realizadas por Odisseus e Eneias, respectivamente, o Flegetonte é rio de fogo como bem o diz o seu nome – o que queima em chamas ardentes (πῦρ, fogo; φλεγέθω, acender a chamar, queimar) –, sendo, pois, a purificação pelo fogo a única maneira de escapar à fraude, miasma dos mais perigosos.
A leitura de Dante é um desafio a qualquer leitor, pelas múltiplas referências à sua contemporaneidade e à cultura clássica, mas, mesmo para quem não as conhece, não há como não entender que a descida aos infernos (κατάβασις) é a melhor maneira de aprendermos sobre nós mesmos e sobre a nossa necessidade de mudança e de ascensão. Se a fraude nos faz descer aos infernos, o seu enfrentamento nos faz retornar aos ares superiores. Como disse Virgílio (Eneida, VI, 128-129), apesar de todas as dificuldades a enfrentar: descer é fácil; voltar seus passos e subir em busca dos ares superiores é onde se encontra a dificuldade – hoc opus, hic labor est.