A música popular brasileira registra vários casos de canções que foram lançadas por determinado intérprete sem obter maior repercussão e, depois, quando gravadas por outro cantor ou cantora, alcançaram enorme êxito, ao ponto de se tornarem clássicos do nosso cancioneiro. Aracy Cortes, cantora que surgiu na década de 1920 e que obteve grande sucesso na época do teatro de revista, é personagem de dois desses casos.
“No Rancho Fundo” — a imortal música de Ary Barroso e Lamartine Babo — fazia parte de uma revista que foi apresentada, sem sucesso de público, em junho de 1930, em um teatro do Rio de Janeiro. A canção, que era cantada por Aracy Cortes no espetáculo, tinha o título “Esse mulato vai ser meu”, com o subtítulo “Na Grota Funda”. A letra da música era do grande caricaturista J. Carlos, que também era o autor da revista.
Entre os poucos espectadores da peça se encontrava Lamartine Babo, que adorou a música de Ary Barroso e detestou os versos de J. Carlos. Decidiu, então, sem autorização dos compositores, fazer uma nova letra para a canção e começou a apresentá-la em programas de rádio, com grande aceitação.
No ano seguinte, a canção com a nova letra de Lamartine Babo foi gravada pela cantora Elisinha Coelho e se tornou um grande êxito, tornando-se, inclusive, prefixo da Rádio Nacional. Decorridos noventa anos da sua primeira gravação, “No Rancho Fundo” permanece como uma das principais músicas do repertório nacional, chegando a ultrapassar até as nossas fronteiras, como mostra uma brilhante interpretação feita pelos cantores e instrumentistas portugueses Antonio Zambuja e Miguel Araújo.
Outro caso de uma música com início inexpressivo e que, depois, veio a se tornar um dos clássicos do nosso cancioneiro popular, tem uma história ainda mais curiosa. A melodia foi composta para o teatro de revista pelo pianista e maestro Henrique Vogeler. Vogeler era um músico conceituado na época, havia substituído Ernesto Nazareth como pianista na sala de espera do célebre Cine Odeon, no Rio de Janeiro, e, durante algum tempo, foi auxiliar direto do compositor Villa-Lobos.
A música foi lançada, inicialmente, em 1928, no teatro, com o título de “Linda Flor”, com letra de Cândido Costa. No mesmo ano, foi gravada pelo cantor Vicente Celestino, sem nenhuma repercussão. Francisco Alves, ainda em 1928, regravou a música, com o título de “Meiga Flor” e versos de Freire Junior. A regravação, com novo título e novas palavras, também passou despercebida.
Em 1929, a canção foi novamente apresentada no teatro em outra revista e, mais uma vez, uma nova letra foi feita, desta vez por Luiz Peixoto, o admirável letrista de “Maria”, “Na Batucada da Vida” e “É Luxo Só” (todas em parceria com Ary Barroso). A canção foi lançada pela cantora Araci Cortes com um novo título: “Iaiá”. Desta vez, ao contrário do que acontecera com “No rancho fundo”, Aracy Cortes foi beneficiada com a nova versão da música. O sucesso popular foi extraordinário e a canção passou a ser conhecida como “Ai Ioiô”. Para o pesquisador José Ramos Tinhorão a música “ficaria como a única composição popular a ser conhecida em três versões, recebendo quatro diferentes títulos”: “Linda Flor”, “Meiga Flor”, “Iaiá” e “Ai Ioiô”.
“Ai Ioiô” teve registros feitos pelas principais cantoras do país: Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Elis Regina, Maria Bethânia, Gal Costa, Nana Caymmi, entre outras. Além do mais, “Ai Ioiô” tem uma grande importância para a história da música popular brasileira, pois foi a primeira gravação em que apareceu na etiqueta do disco o nome “samba canção”, gênero musical que, durante os anos 1940 e 1950, teve grande aceitação popular. Uma das mais recentes regravações de “Ai Ioiô” foi feita pela cantora Zélia Duncan.
Mas, o exemplo mais significativo de uma canção inicialmente desprezada e que se tornou, posteriormente, um dos maiores clássicos da música popular do Brasil é um choro do compositor Pixinguinha.
Alfredo da Rocha Viana Junior, o Pixinguinha, é um dos maiores nomes da música popular do Brasil em todos os tempos. Maestro, arranjador, notável flautista e saxofonista, era também um compositor admirável, autor de vários clássicos do nossa música, dentre eles, aquele que é o mais conhecido, o choro “Carinhoso”.
Pixinguinha compôs o “Carinhoso” em 1917, mas engavetou a música, segundo ele, por certa deficiência na sua elaboração e é ele próprio quem diz por qual razão:
“Naquele tempo, o pessoal nosso da música não admitia choro assim de duas partes (choro tinha que ter três partes). Então, eu fiz o ‘Carinhoso’ e encostei. Tocar o ‘Carinhoso’ naquele meio! Eu não tocava... ninguém ia aceitar”.
Em 1928, Pixinguinha resolveu gravar o “Carinhoso” no lado B de um disco da Orquestra Típica Pixinguinha-Donga. Naquela época, colocava-se no lado B do disco aquela música que não se pretendia dar o destaque principal no disco.
Manuscrito de "Carinhoso" ▪ Fonte: "Na cadência do choro" (Afonso Machado / Jorge Roberto Martins), ed. Novas Direções, 2006.
O choro “Carinhoso”, na sua primeira gravação, não teve nenhuma repercussão, além de ter recebido de uma revista carioca um comentário que finalizava assim: “Não nos agradou”.
No ano seguinte, Pixinguinha voltou a gravar o “Carinhoso”, regendo a Orquestra da RCA Victor, e a música foi novamente colocada no lado B do disco e com o nome de “Carinhos”. Passados cincos anos, em 1934, o bandolinista pernambucano Luperce Miranda fez um novo registro do choro, mais uma vez no lado B do disco e com o nome de “Carinhos”. Nos dois casos, o choro de Pixinguinha não despertou maiores atenções.
Em 1936, um espetáculo beneficente foi organizado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, pela esposa do Presidente Getúlio Vargas. Uma das artistas convidadas para se apresentar no evento foi a cantora Heloísa Helena que, na procura de uma música para cantar no espetáculo, sugeriu ao compositor Braguinha que colocasse versos no antigo choro “Carinhoso” de Pixinguinha.
Segundo Braguinha: “Procurei imediatamente Pixinguinha, que me mostrou a melodia [...] no dia seguinte entreguei a letra a Heloísa que, muito satisfeita, me presentou com uma bela gravata italiana”. A letra simples, que hoje é conhecidíssima, feita às pressas por Braguinha, se encaixou, de modo perfeito, à melodia do choro de Pixinguinha tornando a canção imortal.
“Meu coração, não sei porque / Bate feliz quando te vê / E os meus olhos ficam sorrindo / E pelas ruas vão te seguindo / Mas mesmo assim, foges de mim”
O choro “Carinhoso”, já com a letra de Braguinha, foi oferecido para gravação a dois dos principais cantores brasileiros da época, que o rejeitaram: Francisco Alves e Carlos Galhardo. Chico Alves nem se interessou e Carlos Galhardo, segundo Pixinguinha “falhou”, não comparecendo à sessão que estava marcada para a gravação da música.
O “Carinhoso” foi, então oferecido ao cantor Orlando Silva, que não teria gostado dos versos de Braguinha e encomendou outra letra ao compositor Pedro Caetano. Mas, afinal, Orlando Silva decidiu gravar a canção com a letra de Braguinha.
No dia 28 de maio de 1937, Orlando Silva entrou nos estúdios da RCA Victor, no Rio de Janeiro, para gravar o choro “Carinhoso”, que foi colocado, pela primeira vez, em um lado A de um disco. A música gravada no lado B do disco também não era uma música qualquer. Era a magistral valsa de Pixinguinha “Rosa”, e, segundo o compositor: “a maioria não estava interessada em gravar o Carinhoso, todos queriam gravar a valsa Rosa”.
O disco com “Carinhoso” e “Rosa” ajudou a firmar, definitivamente a carreira de Orlando Silva, que ficou conhecido como “O Cantor das Multidões”, fazendo com que muitos o considerem como o maior cantor brasileiro em todos os tempos. O disco com as gravações de “Carinhoso” e “Rosa” é considerado um dos mais importantes da música popular brasileira. Na gravação, Orlando Silva teve um acompanhamento primoroso: o maestro Radamés Gnatalli no piano, Pixinguinha na flauta, Luís Americano no clarinete e Luciano Perrone na bateria. “Carinhoso” transformou-se em uma das músicas mais conhecidas do país e estima-se que, atualmente, tenha cerca de quinhentas regravações.