Muitas pessoas não se dão conta de que, ao dizer tataravô ou tataraneto, estão usando uma palavra grega – téssares ou téttares. A palavra no grego é τέσσαρες, com a variante ática τέτταρες, para masculino e singular, e τέτταρα, para o neutro. O termo significa o cardinal “quatro”. Tataravó, portanto, deveria ser o quarto avô, mas, como acontece comumente na língua, as palavras acabam por perder o seu sentido original e, mesmo que não se afastem tanto, tendem a expressar outra significação. Assim, tataravô ou tataraneto não são, exatamente, o quarto avô ou o quarto neto, mas o avô ou neto mais distantes, não excluindo, evidentemente, em alguns casos, a exatidão do termo.
A transformação de téttares em tátara, depois tatara e, em seguida, tetra, é das mais comuns na língua, obedecendo à lei linguística do menor esforço: metafonia do /-e/ em /-a/ (téttares > tátara); rejeição do proparoxítono, ocasionando a metátese tônica (tátara > tatara); síncope do fonema medial /-a/, acompanhada de nova metafonia, decorrente da síncope (tatara > tetra), pois tetra é mais fácil de pronunciar do que tatra.
O estudo da etimologia, unindo-se ao estudo da fonética histórica, é dos mais sedutores, deixando-nos apaixonados pelas belezas que a língua nos reserva, quando nos dedicamos a escutá-la e a observá-la. O meu querido leitor, por exemplo, sabe qual é o contrário de “diabo”? Se você disse “deus”, errou completamente. Mas não esmoreça, leitor, Riobaldo afirma com convicção que “Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele...” (Grande sertão: veredas, 22ª ed., Companhia das Letras, 2019, p. 37). O leitor está, portanto, em boa companhia.
Motivado pela nossa herança cultural e religiosa do judaísmo-cristianismo, fomos condicionados a ligar, em oposição ferrenha, ocasionada por sentido translato, “deus” e “diabo”. Na realidade, com o socorro da etimologia, sabemos que o contrário de “diabo” é “símbolo”. Como diria João, o Rosa, é de sarapantar, não é? Explico.
A palavra diabo é oriunda do grego, mas aponta, por causa de uma raiz comum em vários idiomas, para uma origem teórica indo-europeia – diable (francês), diablo (espanhol), diavolo (italiano), devil (inglês), teufel (alemão), duivel (holandês), dyavol (russo)... –, tendo chegado a estas línguas, muito provavelmente, pela expansão da língua latina, cujo termo diabŏlus origina-se do grego diábolos (διάβολος).
Em grego, a palavra é formada pela preposição “diá” (διά) e pelo verbo “bállw” (βάλλω). A preposição tem o sentido de separação, de colocar-se entre. Já o verbo significa lançar, jogar, daí que diabo é, literalmente, “o que se lança para separar”, de onde a ideia de opositor, inimigo, ou, como diz Rosa:
“O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Côxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, O Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos...”
— p. 35 —
Já o vocábulo símbolo muda apenas a preposição – “syn” (σύν) –, que tem o sentido de “estar com”, “estar junto”. O verbo é o mesmo, originando tanto “symbállw” (συμβάλλω), reunir, como “sýmbolon” (σύμβολον), o sinal de reconhecimento. Literalmente, “símbolo” é, pois, o que se lança para reunir. Veja-se que a contraposição entre “o que se lança para separar” e “o que se lança para reunir” deu origem a diabo como contrário de deus. Oposição mais do que justificada no Cristianismo, em que Deus é símbolo de reconhecimento e de união. E, novamente, Riobaldo nos ensina:
“Deus é paciência. O contrário, é o diabo.”
Algo semelhante acontece com a palavra relíquia. Entre a dor da destruição e da perda, a estratégia de combate e o cinismo, esse termo vai mudando de sentido sutilmente até chegar a um que se distancia da sua origem. Um caminho que vai de Virgílio a Eça de Queirós, passando por Alexandre Herculano aos dias de hoje.— p. 20 —
Diga-se, de imediato que relíquia é um substantivo, cuja origem provém do verbo latino relĭnquo, reliquĕre, com o sentido de deixar de lado, deixar para trás, abandonar. Embora exista o termo no singular (relĭquĭa), ele é mais usado no plural (relĭquĭae), mantendo, nas duas formas, o sentido de restos. É com esse sentido que Virgílio o emprega na Eneida, definindo os Troianos como “restos deixados para trás dos Dânaos e do cruel Aquiles” (Troas, relíquias Danaum atque immitis Achilli, Livro I, verso 30), quando narra a chegada de Eneias, após a fuga de Troia e muitos percalços enfrentados pelo caminho, a Cartago, sobrevivendo a uma tempestade no mar, perdendo sete navios. Relíquias, exprime, então, a dor da derrota – os desvios da rota – e das adversidades.
Alexandre Herculano, em Eurico, o presbítero (1844), utiliza o vocábulo com o sentido dos sobreviventes de uma tropa de combate, de modo a atacar o inimigo, no calor da refega. A concepção, agora é outra, a de heroísmo, contra o invasor Árabe à península Ibérica (Obras – Teatro, poesia, ficção, vol. I, São Paulo, Saraiva, 1959, Capítulo XI – “Dies Irae”):
“O rei godo havia resolvido formar um corpo só das relíquias da sua hoste e com ele acometer a principal batalha dos inimigos, para a destruir rapidamente antes que as alas pudessem socorrê-la.”
— p. 374 —
Eça de Queirós, no entanto, em um dos seus romances mais deliciosos pela ironia e pelo cinismo do personagem, a desvendar a sociedade em que vivemos – A relíquia (1877) – trata o termo com a hipocrisia com que a sociedade faz questão de se mascarar. Sabemos que relíquia passou, a partir do crescimento do Cristianismo, na Idade Média, a designar algo que tenha restado e que tenha se tornado sagrado para a religião e para os seus seguidores, como a coroa de espinhos de Cristo, os pregos da cruz ou as correntes que prenderam São Pedro. Do mesmo modo, no entanto, que a Igreja consagrou esses objetos, que podem inclusive ser restos do corpo de um santo, de um mártir santificado, as relíquias foram sendo inventadas por pessoas inescrupulosas, de modo a tirar proveito da boa-fé dos outros, como os frascos de água do rio Jordão, que se vendem às toneladas hoje em dia...
Desse modo, pegando a distorção da palavra, Eça de Queirós cria um título ambíguo para o seu romance, de modo que o termo se ajuste ao caráter cínico de seu personagem, Teodorico Raposo, o Raposão (Obra completa, vol. I, 1. ed. Rio de Janeiro, Aguilar, 1970):
“Sim! Quando em vez de uma coroa de martírio, aparecera sobre o altar da titi uma camisa de pecado – eu deveria ter gritado, com segurança: ‘Eis aí a relíquia! Quis fazer a surpresa... Não é a coroa de espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Madalena!... Deu-ma ela no deserto...’
E logo o provava com esse papel, escrito em letra perfeita: ‘Ao meu portuguesinho valente, pelo muito que gozamos...’ Era essa a carta em que a santa me ofertava a sua camisa. Lá brilhavam as suas iniciais – M. M. Lá destacava essa clara, evidente confissão – o muito que gozamos: o muito que eu gozara em mandar à santa as minhas orações para o Céu, o muito que a santa gozara no Céu em receber as minhas orações!”
E logo o provava com esse papel, escrito em letra perfeita: ‘Ao meu portuguesinho valente, pelo muito que gozamos...’ Era essa a carta em que a santa me ofertava a sua camisa. Lá brilhavam as suas iniciais – M. M. Lá destacava essa clara, evidente confissão – o muito que gozamos: o muito que eu gozara em mandar à santa as minhas orações para o Céu, o muito que a santa gozara no Céu em receber as minhas orações!”
— p. 1269 —
Ao Raposão, após a malfadada troca da relíquia de Jerusalém – a coroa do martírio de Cristo –, que deveria ser levada para a endinheirada titi Patrocínio ficaram apenas os restos – a camisola de uma de suas amantes de viagem. Deserdado pela tia, porque lhe faltara “esse ‘descarado heroísmo de afirmar’, que, batendo na Terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao Céu – cria, através da universal ilusão, ciências e religiões” (p. 1270), o Raposão percebe que restos só se transformam em relíquia, quando firmemente fundados na convicção do cinismo.