“O que foi visto naquela noite no Cassino Tabarís por bêbados, putas e anjos do céu transbordou até a Praça do Poeta Castro Alves e desaguou no mar dos saveiros”. Esta frase bem poderia ter sido escrita por Jorge Amado, retirada de uma das aventuras de Quincas Berro D'Água, o rei das prostitutas e vagabundos da Bahia. Mas é da autoria de Cida Lobo, do livro Na noite que me queiras (Maringá, Viseu, 2021, p. 145). O romance enfoca o apogeu
da vida de Carlos Gardel, o grande ídolo do tango argentino, com narrativa em primeira pessoa do personagem Alfredo Le Pera, parceiro de Gardel em tangos inesquecíveis, como “Mi Buenos Ayres querido ”, “El día que me quieras”, “Por una cabeza”, este, de melodia belíssima, em que vemos como o Gardel amante dos cavalos e das apostas metaforiza uma história de amor.
A narrativa autodiegética de Le Pera propicia a memória a alongar o período, de 1928 a 1935, cobrindo um tempo maior, derivado, porém, de um único momento – a última noite em Bogotá, de onde o grupo deveria seguir em tournê para Cali, via Medellin. Alfredo Le Pera traz à tona, entre uma apresentação na Colômbia e a partida de avião, para outras apresentações, a sua relação com Carlos Gardel. Dois homens diferentes, que se completam. Em um, a angústia de procurar-se e não se encontrar, fruto de uma difícil relação com o pai; no outro, o homem misterioso, sem pai declarado, mas que se inebria com o tango, parte essencial de sua vida. Para ambos, Alfredo e Gardel, o sucesso não é a finalidade, mas um meio de lidar com a vida. Dinheiro, mulheres, viagens, hotéis e carros de luxo, roupas e hábitos caros não se sobrepõem à simplicidade da vida ou vencem a timidez, no caso de Le Pera. São instrumentos para a busca de si próprios.
Cida Lobo parte da realidade e recria, de maneira deliciosa, esta relação entre os dois, a um ponto de simplesmente esquecermos, nós leitores, a realidade de fundo, que, no limite, não interessa tanto. Ainda que ao final de seu romance, ela nos disponibilize uma bibliografia dando as pistas das informações de que se utiliza, quando ela resolve arrumá-las em um romance, tudo se torna uma envolvente ficção, pouco importando se as situações e os diálogos são verdadeiros ou não, até porque não existe ficção fora da realidade. Por este motivo, o final, que não seria surpresa para ninguém que conhece ou ama Gardel, surpreende, deixando o leitor, ao sabor do deslocamento da ação e da sua brusca interrupção, com uma sensação do permanente. A reestruturação de Cida Lobo, entretecendo realidade e ficção, reafirma que o não dizer é mais importante do que o dizer. Afinal de contas, o que é a ficção senão essa maravilhosa arte de dizer não dizendo? Neste seu primeiro trabalho, informação que se encontra na orelha do livro, não se sente a hesitação da iniciante, mas a firmeza de quem tem a consciência de que a ficção se constrói entre as fissuras da realidade.
Poliglota, inteligente, culto, conhecendo vários saberes artísticos, da poesia ao cinema, bem como os saberes práticos, como a tradução – embora ele não o seja –, além da desenvoltura em vários idiomas, Le Pera é a complementação de Gardel, cujo magnetismo pessoal, simpatia e carisma, atrai as multidões com sua voz de veludo. Ambos incompletos, embora se entendam perfeitamente, por causa de seus amores não realizados, a inesquecível Charlotte, para Le Pera; a impossível e jamais tocada Carmen Miranda, para Gardel. Se os dois poderiam ter as mulheres que quisessem, não têm as que desejam ardentemente. A falta amorosa é mais um elo na corrente que os une. El día que me quieras, torna-se, definitivamente, em Na noite que me queiras.
Cida Lobo sabe conduzir o leitor com o cuidado de quem guia pessoas por caminhos perigosos. E seria muito fácil ela própria desviar-se deste caminho, cuja narrativa não esconde o seu encanto por Gardel. Mas a escritora, com domínio e segurança inequívocos, mantém o controle da narrativa e induz o leitor a se enredar no mistério que envolve a origem de Gardel. Homem simples, que galgou o sucesso e encantou os palcos internacionais – Nova York, Paris, Rio de Janeiro, Buenos Aires... —, com o poder de sua voz, seu charme e elegância pessoais, ou um semideus, entregue a uma pretensa mãe, às margens do Sena? O romance entretece o mito, o duplo, o Gardel que são dois: um que ganha dinheiro e outro que gasta (p. 58), precisando ambos destacados e bem cuidados para que nenhum deles pereça.
Por outro lado, a marcação cronológica temporal dentro da reminiscência, liga o tempo presente do narrador Le Pera, atravessa o tempo da memória, para se religar, mais uma vez, ao tempo presente inicial, sempre utilizada adequadamente, e funcionando para o leitor, como o cronômetro de uma bomba-relógio, que se espera nunca explodir, ainda que zerado.
Ao lançar a semente da dúvida na cabeça do leitor, Cida Lobo ajuda a consolidar ficcionalmente, o denso mistério e paixão, envolvendo o grande artista, que, no coração de seu imenso público, é imortal e sempre presente. Assim como o mito.