Sou dos maiores defensores das edições anotadas. Livros, os importantes, sobretudo, devem merecer notas de comentadores, que sirvam ao lei...

Edições anotadas (Parte I)

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Sou dos maiores defensores das edições anotadas. Livros, os importantes, sobretudo, devem merecer notas de comentadores, que sirvam ao leitor e ao estudioso. Tenho visto, contudo, muitas edições anotadas que parecem não conhecer o sentido do que devem esclarecer, relegando o que deve ser a essência das notas: uma mão dupla, em que o esclarecimento do termo ou da expressão teria um movimento externo, em direção ao leitor, e a sua contextualização, num movimento que a leva de volta para dentro do texto. Infelizmente, nem sempre funciona dessa maneira. Em muitos dos casos, há um movimento único, de explicação do termo, esquecendo da importância que é o retorno da nota ao texto. Constato, além disso, que nem sempre há um critério que norteie a necessidade das notas.
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Por exemplo: as palavras que facilmente podem ser encontradas no dicionário não deveriam ser objeto de nota, a menos que seja uma palavra pouco usual.

Tenho em mente uma edição comentada da obra máxima de Euclides da Cunha (Os sertões: campanha de Canudos, edição, prefácio, cronologia, notas e índices Leopoldo M. Bernucci. 2ª Edição. São Paulo: Ateliê Editorial, Imprensa Oficial do Estado, Arquivo do Estado, 2001), considerada por muitos uma edição fundamental, no sentido de que as muitas notas existentes amenizam a leitura para o leitor menos aparelhado para percorrer os maravilhosos, porém sofridos caminhos dessa obra sem par na nossa literatura, ainda que a sua intenção não tenha sido literária.

Sem querer tirar o mérito do organizador do volume – belíssimo volume, por sinal, com índice onomástico, índice remissivo e iconografia –, faremos alguns comentários, que consideramos pertinentes, como professor e, sobretudo, como leitor, que conhece a importância desse tipo de trabalho. Existem, nessa edição, muitas notas que, na nossa compreensão, não seriam necessárias, umas porque o próprio contexto já as define; outras porque são termos que se encontram com facilidade nos dicionários usuais, como o Aurélio e o Houaiss. Por outro lado, há expressões que deveriam ser esclarecidas pelo comentador, devido à sua origem erudita, que não foram consideradas dignas de nota ou cuja explicação ficou aquém da sua significância.
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Esclarecemos que a significação de uma palavra é importante, em se tratando de um texto, cujo sentido seja, digamos unívoco. Já a significância é produto de uma leitura em segundo grau, verticalizada, mais adequada, por exemplo, para a leitura literária. Em suma, a significação é o primeiro passo, para o entendimento, que só se alcançará na sua plenitude com a significância.

Não entendemos, pois, que existam notas para “consoante”, “banda”, “insolações”, “tormentas”, “proverbial”, dentre tantas outras tomadas ao acaso. Em compensação, não vimos que o responsável pela edição tenha percebido o uso, que me parece único, do verbo ganglionar, como neologismo de Euclides da Cunha, sempre no sentido de isolamento de águas, em poços e lajedos, no sertão. Ficando apenas na mão única, o comentador explica “ganglionam-se” com o significado de “agrupam-se, cacheiam-se”, (nota 212, referente ao Capítulo I de “A Terra”, p. 93). Precisamos ter em mente que o termo como verbo e como substantivo é de utilização recorrente e importante em Os sertões, e que, ainda hoje, os dicionários não incluíram a forma ganglionar a não ser como adjetivo.

Uma nota para “Hércules-Quasímodo” (“O Homem”, capítulo III, p. 207) é mais importante do que aquela aberta para o termo “neurastênicos” (nota 1, p. 207) ou para “garrote” (nota 22, p. 209), vocábulos facilmente encontrados nos dicionários. Pior ainda é a nota para “titãs”, na explicação do comentador “cada um dos gigantes que, segundo a mitologia, pretendem escalar o Céu e destronar Júpiter.” (nota 7, p. 208-9), em que se faz nítida a confusão entre os Titãs,
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que participam da titanomaquia, mito que integra a formação de Zeus, como deus cósmico, em luta contra o pai Cronos e seus tios – os Titãs –, bem narrado na Teogonia, de Hesíodo, e os Gigantes, que são de outro mito, a gigantomaquia.

O sentido do vocábulo “titã”, usado por Euclides da Cunha, bem poderia ter sido aproveitado para a explicação deste oxímoro genial, na definição do sertanejo: Hércules-Quasímodo. Euclides procura descrever o sertanejo como uma figura que apresenta um paradoxo entre a sua figura e a sua ação, quando o trabalho se faz necessário, daí o fato de que “da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias” (“O Homem”, Capítulo III, p. 208).

Além dessa contradição intrínseca entre a forma e o fundo, encontra-se aí uma referência duplamente literária, que requer uma explicação, pela beleza e adequação do seu emprego. É desse modo que Euclides vai, aos poucos, retirando de sua obra monumental o ranço de estudo científico insosso, a ser lido por poucos, dando-lhe um viés nitidamente literário, que apanha o leitor atento a esses chamados. O sertanejo funde em si, numa “intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas” (idem, p. 209), uma síntese das mais improváveis, daí o oxímoro: a feiura de Quasímodo, personagem de Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, com a força invencível do maior dos heróis gregos, Hércules, responsável pela execução de doze trabalhos considerados impossíveis de realizar. Esta força interna que suplanta a aparência do “tabaréu canhestro”,
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Antônio Conselheiro ▪ gravura do periódico A Gazetinha ▪ 1897
é reforçada pela metáfora do “titã acobreado e potente”, seres divinos, gigantescos e de grande força, envolvidos em uma luta mítica e seminal, não só pelo domínio do Céu, mas, sobretudo, do universo.

Do mesmo modo, pensamos que uma nota para “hégira” seria mais proveitosa do que a nota para “dantes” (nota 180, p. 287). Ao referir-se à “hégira do profeta” (“O Homem”, Capítulo IV, p. 287), Euclides concede um toque místico à figura de Antônio Conselheiro, comparando-o, mesmo que guardando as devidas proporções, ao profeta Maomé, na sua emigração de Meca para Medina, em 622 de nossa era, fator preponderante para a instituição da religião islâmica. Perseguido e obrigado a deixar Meca, Maomé emigra para Medina, para depois ressurgir, em 629, e conquistar a cidade pelas armas, tornando-se o incontestável profeta desta grande religião monoteísta, que se notabiliza pela concepção da guerra santa ou Djihād, literalmente “um esforço feito sobre o caminho de Deus” (djihād fī sabīl Allāh), de acordo com o Dictionnaire de l’Islam, religion et civilisation.

A comparação não é infundada, tendo em vista que Euclides em “O Homem”, mais do que o habitante da terra, o sertanejo, no seu desdobramento de vaqueiro e jagunço, prepara o homem místico, conquistador de um espaço, após as várias perseguições sofridas – lutas familiares, Igreja e justiça –, e fundando a sua Meca, em Canudos – Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro.

Obviamente, as diferenças entre Conselheiro e Maomé são gritantes. Começam pelo fato de que a hégira de Maomé (hiğra ou hidjra) é uma emigração e não uma fuga. A chegada de Conselheiro ao sertão da Bahia é mais uma fuga das vicissitudes por que passou,
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Antônio Conselheiro, em ilustração de F. Acquarone.
nunca uma emigração. Se Euclides condena a guerra, ele não alivia no perfil de Antônio Conselheiro, visto como “truanesco”, “pavoroso”, “bufão arrebatado numa visão do Apocalipse” (“O Homem”, Capítulo III, p. 210), dotado de uma “insânia formidável” (p. 211), de profetismo messianista, que consegue a revitalização de Canudos, a partir de 1893, atraindo em romaria os fiéis, para essa Meca Sertaneja, cuja Caaba era o próprio Conselheiro. Por outro lado, ao contrário da cidade santa do profeta Maomé, Conselheiro ali erguera uma “urbs monstruosa, de barro”, definindo muito bem “a civitas sinistra do erro” (“O Homem”, Capítulo V, p. 226), “arx monstruosa” (p. 238), de que ele era “uma cariátide errante sobre o edifício monstruoso” (p. 239).

Vê-se aí, portanto, que a “hégira” de Conselheiro, traduzida em expressão adequada a este enorme paradoxo que foi Canudos na nossa história, faz parte da sua figura contraditória e polêmica, na sua feição “de grande homem pelo avesso” (“O Homem”, Capítulo III, p. 220), que tanto foi em direção à “História como poderia ter ido para o hospício” (“O Homem”, Capítulo IV, p. 252).

Voltaremos ao assunto das notas, no nosso próximo texto, para mostrar como a segunda parte de Os sertões, “O Homem”, prepara a guerra, na alusão à “Troia de taipa dos jagunços”, numa perífrase das mais refinadas, que podemos encontrar.

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