“A partir da quinta-feira suprimia-se o doce, a rapadura, e não se comia nada fora das refeições. Falava-se de pessoas que jejuavam a pão e água. Todo prazer era proibido. Comer, beber, só para manter a subsistência. Nem banho se tomava, era regalo.
Dois dias de severa temperança; a casa inteira, os hábitos e até o ar em solidária comunhão com o martírio do Gólgota, que não ficava tão longe.
Havia um catecismo grande, do tamanho de um atlas, com as passagens de um lado e as figuras do outro. O martírio se apresentava mais vivo, pungente,
Jean-Léon Gérôme ▪ 1867
Seu Herculano, seu Ambrósio, seu Emídio... Cristo no chão e seu Emídio de cara levantada, a mesma barba grande, vendo a crueza de longe. Difícil não achar que a figura do livro não fosse seu Emídio. A vontade era de perguntar a ele, quando viesse fazer as contas no sábado: “Será que esse aqui não é o senhor, seu Emídio?”
O clima do livro, a unção da casa, as poucas palavras, tudo se tornava tão poderoso que o menino já não fazia diferença entre o Gólgota e o sítio, entre os nublados do livro e os das serras de Guaribas. Menino só, sem irmãos, sem companhias, para onde fosse levava esses medos.
Na sexta-feira em que a tarde escureceu e os contornos sombrios do Gólgota baixaram no alto da serra, dali do alpendre de casa julgou ver tudo, as figuras do livro e as do sítio cruzando no mesmo tempo e no mesmo chão. Herculano, Ambrósio, Emídio, Rosa, tudo na mesma página do catecismo ou no mesmo palco que a Nova Jerusalém veio armar muito depois.” (de Notas do meu lugar, 1978).
Jean-Léon Gérôme ▪ 1867
“Deus está aqui”.
Lá de cima, ao som do órgão, o coro de vozes, de cruzados e filhas de Maria, coroava a aleluia que se fechara no missal.
E saíamos contritos. Os grandes, os pequenos, o palco sagrado em que a Rua Dona Yayá Tavares se transformara pelo menos até enquanto não desvanecesse calor incensado que deixávamos por entre as altas paredes da matriz ainda em construção de Santana.