Minha última publicação, no gênero, foi “Arkáditch” – ed. Ideia, 2011. Eis como foi criado: 1 - Assim como “Relato de Prócula...

Como de vários retalhos fiz uma colcha - ou romance

Minha última publicação, no gênero, foi “Arkáditch” – ed. Ideia, 2011. Eis como foi criado:


1 - Assim como “Relato de Prócula” teve o primeiro esboço na minha vontade de escrever algo como “A Cidade e as Serras”, do Eça, pois eu tinha muita coisa pra contar de meus sete anos de Pombal e do que já vivera aqui, Arkádtich – digo logo - é o nome do irmão de Ana Karenina. Tudo veio desse lance russo.

2 - Aconteceu-me de ouvir, no tempo da ditadura, com o Evandro Nóbrega, a história de um casal paraibano que se formara em medicina em Moscou e que por isso estava impedido de trabalhar aqui.

TCM
3 - De Pombal, eu trazia, também, a lembrança de um caso que me empolgara: Nena, da família de minha mulher, viajada, culta, ruiva dos olhos azuis – como era Debora Kerr – era dona do Primeiro Cartório da cidade e patrocinara a carreira de seminarista, em Cajazeiras, de um rapaz que tinha sido analfabeto até os quinze anos, quando, de repente, lá na aba da serra, danara-se a ler e a escrever. Como a educação de toda aquela área tinha como centro esse seminário, lá foi ele estudar de batina. Daí nasceu a correspondência com a madrinha, a que tive acesso por completo. Bem, de repente, o cara desistiu do iminente sacerdócio e começou a escrever do Recife (trabalhando na Crush), em seguida, do Rio (funcionário da Petrobrás e, demitido por subversão, do Banespa), indo finalmente para Moscou - após ter conseguido uma bolsa para a Universidade Patrice Lumumba e outra para a Sorbonne, morrendo logo em seguida, já bastante prestigiado pela enorme inteligência, de um tumor no cérebro.

4 - Nesse meu esboço do romance, juntei a história desse Manuelzinho à do casal, de modo a criar a figura de Zé Medeiros (nome de um dos tios de Ione), casado com dona Dondon (apelido da avó de Ione), com uma
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filhinha que chamam de Nonona (apelido de Ione quando criança), um filho no Sindicato dos Bancários (de cuja diretoria eu participara, no final dos anos 80), uma filha dona de agência de publicidade (como minha filha Andréia era, na época), outra uma cellista (como meu filho Dmitri era baixista) em Madri (mas que vem de volta, desistindo da carreira , como ele desistira da dele). Zé Medeiros, professor de Filosofia da UFPB, estranhamente não gosta de falar do passado, “por causa da ditadura”. Mas dona Dondon e a cellista descobrem um maço de cartas que ele escrevera do seminário da Cajazeiras, depois, do Recife, depois, do Rio, depois de Moscou – “Mas ele não se formou na Sorbonne?!”

5 - Como esclarecer aquela coisa toda? Bem. Lá pelos anos 70, 80, fiz uma reportagem chamada “Necrotério”, em que descrevo meu contato com um “abridor de cadáveres”, que me prometeu mostrar seu trabalho. Pra encurtar a história, o diretor do IML me impediu de fazer isso, e me limitei a conhecer o ambiente (descrito no trecho do romance, abaixo), voltando, de cabeça baixa, pro batente no Banco do Brasil. Foi quando Walderedo Paiva, que trabalhara comigo no filme O Salário da Morte”, me interceptou: “Qual o problema, Solhão?” Acabou me passando um laudo que descrevia a tortura até a morte, a que fora submetido um pedreiro, na cadeia, pra confessar o que não fizera: que roubara a casa do militar onde estivera trabalhando.

RUDN
6 - Pra incrementar a estranheza que a mulher e a filha tinham sentido ante as cartas de Zé Medeiros da universidade Patrice Lumumba, de Moscou, não da Sorbonne, em Paris, o pai dele – que morava com eles – era completamente desmemoriado – o que justificava o modo desconfiado ante o filho, que não tinha sequer um retrato do velho. O personagem, calquei-o em meu sogro, que, por me lembrar muito o James Joyce, fiz, no livro, com que se perdesse no centro de João Pessoa , só encontrado porque Zé Medeiros consegue, com a filha publicitária, que divulgue na TV foto da máscara mortuária do autor do “Ulisses”, como sendo foto dele.

7 - Aqui, o momento, em meu romance, em que é descoberto que Zé Medeiros na verdade estudara na Sorbonne e que seu nome era Arkáditch, dado por seu pai, comunista ferrenho:

“Marisa abriu a porta do velho carro Lada e ergueu-se com dificuldade, no nono mês de gestação, as lágrimas misturadas à chuva. Viu um enterro – acompanhado apenas por automóveis negros – entrando pelo portal do cemitério em frente. Olhou o aguaceiro, o sol entre as frestas dos ciprestes, subiu os degraus com esforço, aproximou-se do portão estendendo a mão direita para o cadeado com as correntes, e olhou para a velha camioneta GAZ-N415 no pátio do necrotério – a porta do lado do motorista com um grupo concentrado de buracos produzidos por uma fuzilaria de grosso calibre. Sob o carro, as enxurradas confluindo no bueiro central. Ao lado, três caixões de defunto – de zinco e sem tampa (um deles com um molhe de cabelos – brancos ou louros) pregados com sangue coagulado. Marisa rezou, sentindo-se sufocar: “Fazei com que não seja ele, fazei com que não seja ele”. Hesitou se entrava. – Tem alguém aí? – gritou num russo estropiado, sentindo a voz superada pelo aguaceiro. Olhou para a porta aberta, lá dentro, que dava para a treva maior do necrotério. – Por favor: tem alguém aí? E ela chora, desamparada, desatando as correntes, empurrando o portão. Entra no pátio, aterrorizada, a cabeça pensa para trás e para a direita, aliança brilhando na mão esquerda pousada sobre o ventre crescido. Avança em direção daquela entrada terrível para o enigma. Mas para e tenta de novo: – Tem alguém aí? Põe o pé direito sobre o batente, empurra o joelho para baixo com a mão, e sobe. Ao penetrar na morgue, murmura: “Tenho horror a isso!” O que poderia ver ali? Um brutamontes com o sexo torado, um recém-nascido encontrado morto dentro de um aparelho sanitário sujo, o dorso de um homem aberto a machadadas. Aquilo lhe pareceu um poderoso cenário de pesadelo, ... e a arquibancada de concreto reforçou a ideia de um teatro. Passou pela banqueta onde havia uma tesoura parecida com a de jardinagem, além de um crânio e de outros ossos junto a um par de luvas pálidas, de plástico, uma velha serra elétrica suja de muito sangue. Mais adiante, entre as sombras, mesas de pedra, tampas escavadas com uma canaleta ao fundo, destinadas ao escoamento do sangue, um cano descendo da cabeça e outro dos pés. Parou na sombra, seu colar e seus brincos resumidos a três constelações tímidas. Um clima cheio de possibilidades sinistras (de que a palavra necrotério diria bem). Foi então que se voltou e viu, dentro de outra mesa igual, o cadáver nu de um homem desventrado, o couro cabeludo voltado para a frente, cobrindo-lhe o rosto, o crânio serrado na testa, revelando-lhe as circunvoluções do cérebro. Vencendo a repugnância e o pavor, removeu o couro cabeludo do morto e recuou ao reconhecê-lo: – Zé Medeiros!


Nota
Sobre o romance Arkáditch, em que a figura central é o sogro do autor – Zé Medeiros (nome de um tio de sua esposa) – "professor da UFPB, em seu último dia de aula, quando vem à tona seu passado, que inclui diplomas na Sorbonne, acusação de um assassinato na Patrice Lumumba, etc, etc."

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