Creio que existam poucas obras de arte tão belas, perfeitas e completas como a Nona Sinfonia de Beethoven (Opus 125, ré menor, 1824). Um m...

Cantos e encantos da Ode à Alegria

Creio que existam poucas obras de arte tão belas, perfeitas e completas como a Nona Sinfonia de Beethoven (Opus 125, ré menor, 1824). Um monumento de magia sonora, em que o grande mestre da música ocidental expõe toda sua concepção de vida de forma solene, e, ao mesmo tempo, com suavidade celestial.

A sinfonia se inicia com o “Allegro ma non troppo, un poco maestoso”, abrindo-se em clima de alvorada e logo explode como o sol a despontar com força e luz no horizonte sobre a imensidão do mar. Nesta primeira parte, Beethoven logo esboça, como preâmbulo, a profundidade de sua jubilosa mensagem, conquanto exiba as dolorosas marcas de seu destino ,
pontuadas nos clímax da orquestra em tutti, com os tímpanos a todo vapor. O andamento evolui com o tema indo, vindo, ora surgindo poético, a delicado , ora bravo e angustiado, sempre a transmitir a expectativa de um prelúdio como alvorada que se irradia na paisagem .

No segundo movimento já se percebe a personalidade madura deste homem admirável, que soube transcender a carga de sua existência dramática para as refinadas emoções que a música é capaz de provocar. Um autêntico “Molto Vivace”, alegre, conciso e ritmado, que prossegue engrandecendo a obra em seu notável e colorido conjunto. Uma graciosa marcha , de vez em quando surpreendida pelos tambores em riste , entremeada com a aparição de fragmentos tão campestres quanto heróicos. Melodias que desfilam felizes e de mãos dadas , em partes distintas que se mesclam em harmonia.

Em seguida, pausa sublime para o magnífico Adagio, que soa com incomensurável sentimento de júbilo íntimo . Este movimento é considerado pelo cronista paraibano Carlos Romero como a mais elevada e inebriante partitura do compositor de sua predileção, o “Mestre de Bonn” (como a ele se referia), e sobre quem escreveu a plaquete: “A outra face de Beethoven”, em 1958, enfocando justamente o seu lado humano. Costumava dizer, emocionado: “Esse Adagio da Nona é uma verdadeira prece”... E era sempre em prece que se mantinha ao ouvi-lo, seja em casa ou nas memoráveis noites em que a assistiu ao vivo, invariavelmente de olhos fechados. A riqueza artística deste terceiro episódio é extraordinária. Beethoven conseguiu lapidar em uma mesma estrutura composicional uma rica tessitura com vozes de vários naipes e matizes,
tal qual flores a brotar de todos os cantos de um jardim sonoro . A polifonia é íntegra, os fragmentos melódicos se ligam um após outro em unidade impecável, construindo dentro do ouvinte um enlevo crescente ao ápice que interrompe a serenidade reinante com duas efusivas declamações, como a dizer "eis o auge" ! Ao final, o Adagio retoma o clima de prece em traje sinfônico , no qual prepara a conclusão crepuscular.

No último movimento Beethoven se consagra, ao lado de Bach, como Deus da Música. Nesta derradeira parte foi inserido, de forma inédita para a época, um majestoso coral. Inovação que causou espanto no seleto ambiente cultural vienense, quando estreou, em 1824, sob a regência do amigo do compositor, Michael Umlauf, que fez questão de tê-lo no palco, junto a si, durante a memorável performance. Àquela altura, sob avançado estado de surdez, Beethoven já não tinha condições de reger.

O grande final “Recitativo” foi dividido em seções indicadas pelo autor na partitura:

IPrestoÓ amigos ▪ O Freunde
IIAllegro assaiAlegria, centelha dos deuses ▪ Freude, schöner Götterfunken
IIIAlla marcia ▪ Allegro assai vivaceFeliz como seus sóis ▪ Froh, wie seine Sonnen
IVAndante maestosoSejam abraçados em milhões! ▪ Seid umschlungen, Millionen!
VAdagio ma non troppo, ma divotoSim, prostem-se ▪ Ihr, stürzt niede
VIAllegro energico, sempre ben marcatoCom alegria, linda centelha divina, abracemo-nos todos ▪ Freude, schöner Götterfunken – Seid umschlungen, Millionen!
VIIAllegro ma non tantoAlegria, filha de Elísio! ▪ Freude, Tochter aus Elysium!
VIIIPrestissimoAbraçemo-nos, enfim, todos unidos! ▪ Seid umschlungen, Millionen!

No início do quarto e último movimento, após a austera e explosiva introdução , Beethoven narra uma breve retrospectiva repassando cronologicamente trechos dos principais temas abordados nos andamentos anteriores , intercalados por recitativos nas cordas graves. A seguir, após a última e mais dramática declamação, os baixos entoam solemente o novo tema , que já prenuncia a triunfante inovação: a primeira Sinfonia Coral!

Antes do coro, entretanto, ouve-se o que de mais essencial há nesta música: estupenda criatividade. A beleza do emblemático tema principal , pelo qual a Nona é mundialmente conhecida, que pautou e ainda pauta tantos acontecimentos históricos, é apenas um dos trechos do longo desfecho. A complexidade do canto lírico se insere na textura orquestral de forma tão excepcional,
permitindo a Beethoven demonstrar que a arte é o único meio em que a perfeição se torna possível. Fugas arrrebatadoras, magistralmente esculpidas e entrosadas nas cordas misturam-se a cantos, recitativos, trechos a quatro vozes , coros em tutti enfeixam o conjunto da obra a que alguns consideram como a mais expressiva de todos os tempos.

Talvez nenhum poema poderia caber mais adequadamente ao colossal contexto plástico criado por Beethoven para arrematar uma carreira cuja produção ressoa há mais de 200 anos pelas plateias do mundo inteiro: A “Ode à Alegria ” (Ode an die Freude) - do poeta e filósofo Friedrich Schiller. Uma exaltação a Deus, à união e ao amor entre as criaturas, que traduz fielmente a imensa gratidão de Beethoven à virtude de poder compreender o mundo com alegria, apesar de tudo:

“Oh amigos, mudemos de tom! Entoemos algo mais agradável e cheio de alegria! Alegria, mais belo fulgor divino, filha de Elíseo, ébrios de fogo entramos em teu santuário celeste! Teus encantos unem novamente o que o rigor da moda separou. Todos os homens se irmanam onde pairar teu voo suave. A quem a boa sorte tenha favorecido de ser amigo de um amigo.

Quem já conquistou uma doce companhia, rejubile-se conosco! Sim, também aquele que apenas uma alma, possa chamar de sua sobre a Terra. Mas quem nunca o tenha podido, que livre de seu pranto esta Aliança! Alegria bebem todos os seres no seio da Natureza: Todos os bons, todos os maus, seguem seu rastro de rosas. Ela nos dá beijos, as vinhas, e um amigo provado até a morte.

A volúpia foi concedida ao verme e o Querubim está diante de Deus! Alegres, como voam seus sóis através da esplêndida abóboda celeste! Sigam, irmãos, sua rota. Gozosos como o herói para a vitória. Abracem-se, milhões de seres! Enviem este beijo para todo o mundo! Irmãos! Sobre a abóboda estrelada deve morar o Pai Amado. Vos prosternais, multidões? Mundo, pressentes ao Criador? Buscais além da abóboda estrelada! Sobre as estrelas, Ele deve morar.”

Ao ouvir a Nona Sinfonia, o êxtase é inevitável. Uma obra capaz de nos renovar o que jamais deve faltar ao espírito: A fé e a esperança em um mundo melhor. Mesmo que, em certos momentos, isso pareça se afastar de nós.

Esse é o poder reconfortante da música. De nos fazer refletir acerca das maravilhas deste mundo, tão pequenino diante da infinitude cósmica, quanto imenso perante o universo microscópico. Imagino: se aqui na Terra aos humanos foi permitida inteligência capaz de criar músicas como a Nona Sinfonia de Beethoven, o que se pode esperar além deste mundo? Maravilhas ainda maiores, evidentemente.

Afinado com a transcendência que a música produz, lembramos de um insight experimentado sob a nave da Notre Dame de Paris quando, num certo domingo, à hora de Maria, com os ouvidos conectados diretamente ao coração, escutamos subitamente monumental órgão da bela igreja executar a ária “Acordemos, a Voz nos chama ”, da Cantata nº 140 de Bach.

Naquele transe interior pudemos saborear um pedacinho daquele Reino dos Céus que Jesus conferiu às crianças, aos humildes, aos “pobres de espírito”, carentes de perspicácia, mas ricos de pureza e bondade. Quem sabe não teria sido um pouco do que Beethoven sentiu ao se inspirar nesta sinfonia, em sua Pastoral, na Sonata ao Luar, à beira do Reno, na Sonata Primavera, andando pelos parques floridos, ou no divino andante do 5º concerto para piano e orquestra… Ao esquecer de todas as algúrias, frustações, decepções que o angustiaram, mas incapazes de lhe domar o espírito que, vitorioso, atingiu a completa ressurreição por meio da música e da esperança na fraternidade. Talvez seja o mesmo que sentimos ao olhar para este céu brilhante, ouvir o barulho do mar que acolá se movimenta em ondas macias, e o pio que a corujinha entoa pela noite adentro na relva orvalhada...

Assim, consolidamos entendimento profundo em torno da fé que tais sonoridades refletem na expansão da consciência, provocando um estado d'alma raro e precioso, que nunca deveríamos esquecer. Quisera pudéssemos permanecer assim diante das vicissitudes da correria urbana, das nuances de saúde, próprias da condição humana, dos fatos que se nos apresentam equivocadamente como infortúnios e inoportunos por nossa limitada visão.

Que nossos olhos, do corpo e do espírito, prossigam iluminados pela intuição que nos nutre de fé e esperança na grandeza da Criação Divina... Das reflexões que se espraiam nos ternos recônditos do ser, a nos sussurrar o grande segredo. Calma, Deus existe!... Sinta-O nos cantos e encantos da Ode à Alegria.


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  1. Amigo Germano, uma aula didática sobre essa admirável obra prima do Mestre Beethoven. Para guardamos com muita alegria na mente e no coração.

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    1. Professor Marco, seu comentário chega como um passe magnético. Grato!

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  2. Admirável saber e escrever do meu amado amigo Germano!

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  3. Germano, deu-nos uma aula prática de música clássica.
    Fez-nos conhecer nuances da sinfonia que só os olhos e ouvidos de um mestre podem alcançar!

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    1. Meu amigo médico e cronista José Mário, muitíssimo obrigado. Sou seu leitor e admirador

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  4. A Nona, com a estupenda inovação de um coral numa sinfonia, tem - além da enome beleza - a estupenda força de extrapolar formas encontradas, como Calder faria com os móbiles na escultura, Piscator ao incluir filmes em suas montagens teatrais.

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  5. Mestre, Boa tarde.
    Velhote Solha quem me mandou para cá. Devo-lhes, a ele e a si. Conto-lhe que no tem da fita k7, pedi a um filho para gravar o terceiro movimento à moda contigo de grilo, terminando é recomeçando, as infinitum. Vejo que o Terceiro também lhe basta. Grande. Guardar este seu ensaio!

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