"Pra variar estamos em guerra". Assim cantava Elis Regina, numa gravação de 1980, da música de Rita Lee e Roberto de Carvalho, "Alô, alô marciano". A mesma "lovely Rita" que, um ano antes, nos presenteou com a deliciosa "Mania de Você". Nada melhor do que não fazer nada, só pra deitar e rolar com você. Pouco mais de 40 anos se passaram, depois dessas gravações, e nós estamos em guerra. Ao invés de estarmos rolando e fazendo amor como bem nos convier, estamos em guerra.
Acompanho os noticiários, as postagens dos amigos nas redes sobre o fato. Me sinto como naquele conto budista, no qual alguns cegos, que nunca viram um elefante, tentam descrever o animal por meio das impressões que têm ao tocá-lo. Cada um o descreve a partir da parte que o toca. Um tronco, uma parede, uma enorme cobra, um leque. Respectivamente, perna, corpo, tromba, orelha. Não me sinto capaz de explicar. Sei, evidentemente, que existe poder,
Rohan Gupta
Uma coisa, eu sei: a guerra é a mais perversa das perversas manifestações humanas.
Neste exato momento, mães estão perdendo filhos, mulheres estão perdendo seus maridos, crianças estão assustadas e desamparadas, animais estão sendo mortos e abandonados. Onde havia uma praça verde, com meninos tomando banho numa fonte, idosos jogando xadrez, casais de mãos dadas entre as árvores, agora existe uma cratera. Uma ferida aberta, um buraco sangrento nessa vergonha que se torna a humanidade nesses momentos. Psicopatas alheios ao sofrimento de seres humanos que abandonam suas casas, suas referências e partem para um nada, buscando se proteger das bombas. Famílias que precisam escolher o pouco que poderão levar consigo e o muito que deixarão, incluindo a sensação confortável do teto e da cama.
Você consegue se imaginar nesse lugar?
Pois essa é outra questão.
A gente assiste a tudo como se fosse um filme. As redes permitem assistir a uma guerra no conforto do sofá. As redes permitem que a gente expresse a nossa indignação, que a gente compartilhe os vídeos e textos dos intelectuais, dos pensadores e dos influencers
Georgi Zvezdov
E ainda tem a turma dos memes, das piadinhas de humor cruel, que, no meu modo de pensar, são uma forma horrível da falta de empatia, do amortecimento da vida, da pulsação, do sangue enfraquecido pela estupidez humana.
Estamos em 2022. Deveríamos estar trabalhando com a cura do câncer; voltando a viver felizes após uma pandemia enlouquecida e demorada, que também não era para estar existindo; deixar as pessoas viverem suas vidas do jeito que elas quisessem. Deveríamos estar dirigindo carros movidos a combustíveis não poluentes, comendo coisas que não crescem à custa de venenos ou hormônios, desenvolvendo nossas capacidades criativas à máxima potência, rolar, rolar, rolar na pia, no chão, na melodia... mas não. Estamos vendo pessoas pedindo a volta da ditadura, religiosos odiando em nome de Deus. Estamos em guerra. Sempre estivemos, eu sei. Mas também sei que isso é coisa que já não era pra existir nem quando Elis gravou aquela música ali em 1980.
Vou dizer uma coisa pra vocês: faz um tempo que está sendo muito difícil cuidar da nossa saúde emocional. Eu trabalho com isso. Quando uma pessoa me diz que não está bem, a minha pergunta é:
— E quem está?
Pavel Neznanov
Pra variar, estamos em guerra.