Os dias amanheciam tristes, naquele tempo, sem que se soubesse exatamente o porquê. A coisa foi acontecendo paulatinamente. Ao fim e ao cabo, havia uma espécie de véu, uma trama de cor escura, recobrindo as alegrias, à moda das imagens nas catedrais, envelopadas pelo sentimento quaresmal.
Os homens viviam sós e carpiam perdas atávicas, indistintas e mal elaboradas. Uma legião, espalhada em moradas penumbrosas. Levantavam-se tortos, desprovidos de vontades e cogitações, com os pomos-de-adão subindo e descendo nos pescoços pregueados, enfiando os pés em chinelos frios e jogando sobre si roupões amarfanhados. Urinavam aos pingos, sem micção; lavavam-se mecanicamente, com parcimônia, temendo, com os esfregaços, fruir do milagre da água matinal esperta acordando os átomos da pele. Depois, cabisbaixos, patelas estalando sob o peso oceânico dos corpos exânimes, seguiam para um desjejum dessaborado, privados que foram das energias do sal, do vinagre e do açúcar.
Esse homem em especial, alquebrado na sua verticalidade, como os demais, um pouco passado da meia idade, pele de sardas salientes, macerada e ressecada de quem se expôs sem reservas ao clima equatorial e a perigos diversos ao longo de uma juventude tardia, cumpria sua litania. Comia de pé, esfregava os olhos lacrimejantes saltando de dentro de uma barba grisalha, sem aparo, enquanto, trôpego da noite, cultivava uma réstia de civilidade, requinte de tempos imemoriais: seguia para a varanda pálida do seu apartamento, solfejando a ária de uma ópera, mirando o vazio do horizonte escuro e tentando buscar, debalde, na balbúrdia de sinapses em que se transformara sua mente, quadras felizes vividas ali mesmo, naquele espaço hoje transido por mortífera opacidade.
A resiliente avenca, pequena e atrevida, contida como um sapo verde no apertado vaso de barro com motivos geométricos, era o único ser pulsante ali, companheira imóvel do humano naquela jornada insípida e cotidiana. Tinha desejos, porém, na sua acinesia! A sutil anima vegetal ansiava, se pudesse, por colorir o ambiente todo, incluída a face melancólica que manejava aquela garra rígida, repositório do alimento aquoso que recebia de quando em quando. O resto dos nutrientes, catalisava, sôfrega, das gotas de orvalho que o vento, ácido como se tornara o mar, trazia até si.
Juntos, homem e planta, atravessavam as manhãs, o primeiro parecendo sorver da segunda, com uma língua comprida de libélula, algo dessa seiva natural que subsistira e que os mantinha, em adição à insossa ração regular. Ela, no seu turno, comprazia-se em escorar aquele espírito balouçante e fragmentado, tão diverso e, a um só tempo, tão achegado ao seu.
Torcia, até, intimamente, vibrando as sutis folhinhas esculpidas pela razão áurea, sempre que o sol embaciado aparecia no limiar, para que ele ampliasse a voz e gritasse por completo aquela música maviosa da qual ele sussurrava tão-só as primeiras notas: lá, lá, lá... E depois o silêncio denso, quase sólido, que perdurava por todo o dia.
É que os melodiosos acordes, ainda que incompletos, partidos, faziam-na esticar-se na sua vegetalidade; ampliar-se como um polvo, cuja forma ignorava, mas que platonicamente conhecia, unidos que eram na filogenia de ambos. Era como se ela adquirisse tentáculos e, espichando-os, tocasse em tudo, num amplexo cósmico. Tinha a convicção mesma que, no dia em que isso acontecesse, um panóptico lhe permitiria enxergar todo o interior daquele espécime esquisito, quem sabe curando-o desse estado catatônico, um tipo de estupor, o qual, a despeito de alguma beleza, certa estética da tristeza, o impelia inexoravelmente ao abismo. Ela percebia - ora se não -, com os olhinhos sensíveis das samambaias, a coreografia encantada com que ele ensaiava dois ou três passos na direção do vácuo, floreando os lábios com um imperceptível sorriso de vitória. Nesses instantes aflitivos, ela desejava ser uma robusta e espinhenta cactácea para se interpor entre ele a balaustrada.
Justo naquela alvorada, quando, sabe-se lá em virtude do quê, o sol nasceu brilhante depois de um chuvisco, engendrando um raríssimo arco-íris, o homem, bem lavado e barbeado, abriu de chofre a porta da varanda, lançou um olhar intenso de entusiasmo para a avenca, que tremeluzia de expectativa, empertigou-se, aspirou o ar com a voracidade de alguém que se afoga e soltou, com energia titânica, uma impressionante voz de baixo, que ressoou do mais recôndito da sua caixa torácica, fazendo a potência do canto suster toda a harmonia daquele instante: Nessun dorma! E prosseguiu, abaixando ainda mais o brado pulmonar de indescritível perfeição: Nessun dorma...