Durante sete anos (de 1965 a 1972), ocorreram, no Brasil, diversos festivais de música popular, que marcaram de tal forma o ambiente cultural do país que o período ficou conhecido como a “Era dos Festivais” (título de um alentado livro sobre o assunto escrito pelo crítico musical Zuza Homem de Mello). Os eventos premiavam, por meio de um júri qualificado, as melhores composições inéditas que eram apresentadas. Os festivais realizados nesses anos tiveram ampla cobertura da mídia em geral e revelaram uma brilhante geração de autores, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento.
Como saldo da “Era dos Festivais” ficaram músicas imortais do nosso cancioneiro popular, a exemplo de “Arrastão” (Edu Lobo/Vinícius de Moraes – 1965), “A Banda” (Chico Buarque – 1966), “Disparada” (Geraldo Vandré/Théo de Barros – 1966), “Roda Viva” (Chico Buarque - 1967), “Alegria, Alegria” (Caetano Veloso – 1967), “Domingo no parque” (Gilberto Gil - 1967), “Ponteio” (Edu Lobo/Capinam - 1967), “Travessia” (Milton Nascimento/Fernando Brandt – 1967), “Sabiá (Tom Jobim/Chico Buarque – 1968), “Pra não dizer que não falei das flores” (Geraldo Vandré – 1968), “Sinal Fechado” (Paulinho da Viola – 1969), “Universo no teu corpo” (Taiguara – 1970) e “Casa no campo” (Tavito/Zé Rodrix – 1971).
A partir de 1971, o formato dos festivais de música começou a se esgotar, a censura afastava dos eventos a participação dos principais compositores do país, o que, consequentemente, acarretava queda na audiência e no interesse do público. Em 1972, foi realizado, no Rio de Janeiro, o sétimo Festival Internacional da Canção, que era conhecido como FIC, que foi o último desses grandes eventos e que foi o primeiro festival de música popular no Brasil a ser transmitido em cores pela televisão.
Para o psicanalista e teatrólogo Roberto Freire que foi, em 1965, jurado no primeiro, e , em 1972, no último festival de música popular:
“Os festivais foram um acontecimento importantíssimo na vida brasileira. Primeiro porque mobilizaram o povo a participar da criação e da renovação na música brasileira. Segundo porque com a tecnologia da televisão puderam abranger um número muito maior de pessoas na divulgação e no debate sobre a música brasileira. Terceiro porque têm o significado de um fato histórico com uma importância bem superior ao que se imaginava. Os jovens não sabem que Chico Buarque nasceu num festival e é preciso que eles saibam a força que isso teve, qual foi a luta, única no mundo, para se operar essa revolução na música popular brasileira”.
O Festival Internacional da Canção - FIC era dividido em duas partes, uma com composições nacionais e a outra de músicas estrangeiras. Em uma das eliminatórias da parte nacional do último FIC, o de 1972, realizada no Rio de Janeiro, foi apresentada uma música de um compositor capixaba, ainda praticamente desconhecido, chamado Sérgio Sampaio. No ano anterior, ele havia participado de um disco “experimental” (“Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10”) com Raul Seixas, seu amigo e parceiro de ideias (na época, também, ainda sem qualquer destaque como compositor). O disco não obteve nenhuma repercussão.
A música de Sérgio Sampaio, que o próprio compositor interpretou no 7º FIC, foi desclassificada em uma das fases eliminatórias do festival, sob protestos da cantora Nara Leão, que presidia o júri, que alegava que a apresentação da canção havia sido comprometida por um tumulto que ocorrera nas arquibancadas do Maracanãzinho, local onde se realizava o evento.
Aquele último FIC ficaria, também, marcado pela interferência direta do governo militar na condução do evento. Segundo Solano Ribeiro, diretor do festival, em depoimento dado à Folha de São Paulo, quase três décadas depois do episódio, houve uma determinação dos militares para afastar Nara Leão da presidência do júri do festival, em razão de uma entrevista da cantora com críticas ao regime: “Na época, o Walter Clark (diretor da TV Globo, que promovia o FIC) me disse, sem dar nomes, que havia chegado na Globo uma exigência dos militares para que Nara fosse afastado do júri”. Esse fato, fez com que todo o júri nacional fosse substituído por membros estrangeiros que estavam no Rio para participar da parte internacional do festival.
No seu livro “A Era dos Festivais” Zuza Homem de Mello relata a participação do novo júri que foi escolhido para o 7º FIC:
“O novo júri seria presidido pelo editor da revista Billboard, Lee Zitho, e seus companheiros gringos receberiam uma tradução literal das letras para inglês e francês acompanhada de uma adaptação para que compreendessem o sentido de cada canção brasileira. Por exemplo, ‘Eu quero é botar meu bloco na rua’ foi traduzido por uma senhora, que confessou estar meio sem prática para a tarefa, para “I Want to Put My Block in the Street”, o que, na cabeça dos gringos, foi entendido como ‘eu quero colocar meu enorme pedaço de pedra na rua’”.
A intervenção direta do governo militar no FIC teria sido uma das razões para o fim dos festivais que eram promovidos pela TV Globo. Segundo Solano Ribeiro, que havia sido o criador da fórmula dos festivais de música popular, em depoimento a Zuza Homem de Mello, os eventos foram encerrados “porque a Rede Globo ficou cansada de resolver problemas políticos. A Globo se desinteressou por festival. Preferiu parar e parou”.
Apesar de ter sido eliminada no FIC, a música de Sérgio Sampaio, que tinha o título “Eu quero é botar meu bloco na rua”, foi lançada pelo compositor, naquele mesmo ano, em um compacto simples (um disco de vinil de 7 polegadas com uma música de cada lado) e obteve um estrondoso sucesso, vendendo cerca de 500 mil cópias (um número extraordinário para a época). “Eu quero é botar meu bloco na rua” se tornaria uma das pouquíssimas canções daquele festival de 1972 a resistir, depois de meio século da sua primeira gravação, à implacável ação julgadora do tempo.
Embora “Eu quero é botar meu bloco na rua” não tivesse características tipicamente carnavalescas, era uma marcha-rancho relativamente lenta, foi uma das músicas mais executadas, em 1973, nos bailes de carnaval que se realizaram por todo o país, e, desde então, durante os 50 anos seguintes, a canção nunca deixou de ser muito executada. É sempre cantada em rodas de música, em manifestações políticas e em passeatas. “Eu quero é botar meu bloco na rua” já teve várias regravações, entre elas as feitas por Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Lenine e Casuarina, Margareth Menezes, Roupa Nova e Antônio Carlos e Jocafi.
“Eu quero é botar meu bloco na rua” surgiu durante os anos do governo do general Médici, a fase mais repressiva da ditadura militar que foi instaurada no país em 1964. A marcha-rancho de Sérgio Sampaio tornou-se uma espécie de hino de protesto naqueles tempos sombrios. O próprio compositor reconhecia esse matiz da sua música em entrevista dada, em 1989, ao compositor Zeca Baleiro:
“A grande importância dessa canção é ter sido feita e lançada numa época em que as pessoas estavam muito amordaçadas e bastante medrosas de abrirem a boca para falar qualquer coisa”.
“Eu quero é botar meu bloco na rua” tem uma primeira parte lenta, que representava um quase desânimo com a situação pela qual o país vivia com o regime ditatorial (o Durango Kid, como a ditadura é retratada na letra da música) que, naquele momento, estava praticamente consolidado. Alternando com o desanimador início da canção, surge uma segunda parte de exaltação e otimismo em uma mudança de ventos, o que somente acabaria acontecendo mais de uma década depois.
Há quem diga que eu dormi de touca
Que eu perdi a boca, que eu fugi da briga
Que eu caí do galho e que não vi saída
Que eu morri de medo quando o pau quebrou.
Há quem diga que eu não sei de nada
Que eu não sou de nada e não peço desculpas
Que eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira
E que Durango Kid quase me pegou.
Eu quero é botar meu bloco na rua
Brincar, botar pra gemer
Eu quero é botar meu bloco na rua
Gingar, pra dar e vender.
Eu, por mim, queria isso e aquilo
Um quilo mais daquilo, um grilo menos disso
É disso que eu preciso ou não é nada disso
Eu quero é todo mundo nesse carnaval.
Nascido em Cachoeiro de Itapemirim, Sérgio Sampaio, aos dezesseis anos, começou a trabalhar como locutor em uma rádio da cidade e se envolveu com o ambiente artístico. Sua família era ligada à música, seu primo Raul Sampaio obteve certo êxito como cantor e compositor (“Meu pequeno Cachoeiro”, “Meu pranto rolou”, “Eu chorarei amanhã” ▪ Vídeo ).
Apesar do grande sucesso de “Eu quero é botar meu bloco na rua”, Sergio Sampaio não conseguiu, posteriormente, estabelecer uma vida profissional regular, do ponto de vista mercadológico. Depois do lançamento, em 1973, do seu primeiro álbum individual, que incluía “Eu quero é botar meu bloco na rua”, Sérgio Sampaio não cumpriu o circuito obrigatório para divulgação do disco e passou um período afastado em Cachoeiro do Itapemirim.
Avesso à autopromoção e às cruéis leis do mercado da música popular, Sampaio teve uma carreira muito inconstante, tendo gravado apenas três álbuns e ficou com a pecha de compositor “maldito”, cult, no sentido que atualmente se dá aos artistas que transitaram fora do circuito comercial.
As letras das músicas de Sérgio Sampaio tinham como característica uma cortante ironia, como é o caso de “Meu pobre Blues” que tem como referência o seu conterrâneo Roberto Carlos:
Meu amigo...
Um dia eu ouvi maravilhado
No radinho do meu vizinho
Seu rockezinho antigo
E foi como se alguma bomba
Houvesse explodido no ar
E todo o povo brasileiro
Nunca mais deixou de dançar
E desde aquele instante
Eu nunca mais parei de tentar
Mostrar meu blues pr'ocê cantar
Foi inútil...
Juro que tentei compor
Uma canção de amor
Mas tudo pareceu tão fútil
E agora que esses detalhes
Já estão pequenos demais
E até o nosso calhambeque
Não te reconhece mais
Eu trouxe um novo blues
Com um cheiro de uns dez anos atrás
E penso ouvir você cantar...
Sergio Sampaio morreu em 1994, aos 47 anos, em quase total esquecimento. Embora tenha falecido afastado dos palcos e das gravações a sua obra, foi, no decorrer do tempo, sendo gradualmente reanimada, fazendo com que o compositor do Espírito Santo seja, atualmente, bastante cultuado por uma grande legião de admiradores.
Quase três décadas após a sua morte, a perenidade da obra de Sérgio Sampaio pode ser avaliada pelo material atualmente disponível sobre a sua música e a sua vida. A biografia do compositor (“Eu quero é botar meu bloco na rua!”, escrita por Rodrigo Moreira) já está em uma terceira edição e foi editado um Songbook com as letras das suas canções acompanhadas dos respectivos acordes em cifras. A discografia de Sérgio Sampaio está presente na plataforma streaming Spotify, através dos três álbuns que foram gravados e lançados, em vida, pelo compositor capixaba (“Eu quero é botar meu bloco na rua” (1973), “Tem que acontecer” (1976), e “Sinceramente” (1982)) e de “Cruel”, um disco que foi lançado postumamente.
Para Zeca Baleiro, um dos maiores divulgadores da obra de Sérgio Sampaio:
"Um artista não é admirado pelo que cria apenas, mas também pela aura que é criada em seu entorno, às vezes por obra do acaso, às vezes por uma engenharia misteriosa da Natureza, às vezes por obra, involuntária ou não, do próprio personagem em questão. E a persona artística de Sampaio, carimbado de maldito pela mídia, autoirônico em relação ao duelo fracasso versus sucesso, seu ar de homem de talento que despreza a glória, à margem da indústria, nos fascinava, antissistêmicos românticos que éramos àquela época".
Sergio Sampaio, na já citada entrevista que ele deu a Zeca Baleiro, dizia que respondia, quando lhe perguntavam “e aí vai botar o bloco na rua?”
— “Não. Eu já botei. Falta vocês botarem”