Menos de dois meses depois da deposição do imperador Pedro II e da implantação do regime republicano no país, um decreto, assinado por todos os membros do Governo Provisório da República, proibia a intervenção do Governo Federal e dos Estados em matéria religiosa, consagrava a plena liberdade de cultos e extinguia o regime de padroado. Pelo “direito de padroado”, vigente no período monárquico, cabia ao imperador, entre outras atribuições no âmbito eclesiástico, a competência para nomear, bispos, vigários e padres.
Apesar da publicação do decreto que separava a Igreja do Estado, algumas questões ficaram dependentes de regulamentação, como era o caso da administração dos cemitérios e, principalmente, da instituição do casamento civil. Essas pendências foram objeto de várias discussões nas reuniões do ministério do Governo Provisório. Em uma delas, a ata registra que o paraibano Aristides Lobo, ministro do Interior, fez o seguinte comentário: “se tem levantado murmurações com referencia às reformas religiosas”. O que ocasionou um rebate do ministro da Justiça Campos Sales, assim registrado na ata da reunião:
“em matéria de religião, entende que as reformas devem ser radicaes, ou então nada fazer-se. Não convem contemporisar com o clericalismo, a quem parece o governo temer; e, fazendo parte do governo, não póde deixar de pugnar pelas mesmas idéas pela quaes se debateu nas orações publicas, na imprensa e no parlamento. Está disposto a não ceder nesta questão”
O estabelecimento do casamento civil foi, ao que tudo indica, a decisão do Governo Provisório da República que despertou mais polêmica na sociedade. Nos últimos anos do Império, a adoção do casamento civil, “indissolúvel e facultativo” chegara a ser admitida pelo próprio Imperador Pedro II em sua “Fala do Trono” na abertura dos trabalhos legislativos de 1884. No entanto, quando, em 24 de janeiro de 1890, saiu o decreto regulamentador do casamento civil, foi grande a reação do meio eclesiástico.Era evidente que a medida acarretaria uma radical perda do poder político e econômico dos párocos e vigários e da própria Igreja. A reação religiosa à nova legislação foi de tal ordem que dificultava a efetiva implantação do casamento civil no país, o que fez com que, em junho de 1890, o governo determinasse que “nenhum casamento celebrado no Brasil desde 21 de maio de 1890 será valido se não for contrahido perante a competente autoridade civil”.
A resistência dos religiosos ao casamento civil, fez com que as uniões matrimoniais, pelo estatuto civil fossem postergadas, o que pode ser comprovado pelo caso da Paraíba. Somente em julho de 1890, seis meses após a edição do decreto regulamentador, foi realizado, com a presença do governador Venâncio Neiva, o primeiro casamento civil no Estado, conforme notícia publicada no jornal Estado da Parahyba:
“Casamento Civil — Effectuou-se no sabbado ultimo (19) do corrente, no Paço da Intendencia Municipal o primeiro casamento civil celebrado n’esta Cidade. Presentes os nubentes, testemunhas, assistirão ao acto o Cidadão Governador Dr. Venancio Neiva e muitas pessôas gradas. Funccionou como Juiz o Dr. Honorio de Figuerêdo que, em nome da lei, firmou o contracto para produzir os effeitos juridicos. Foi uma ceremonia simples e tocante, que produziu bôa impressão. Nossos comprimentos ao jovem par."
"Estado da Parahyba", 23 de julho de 1890
No mês seguinte, as cerimônias de casamento civil começaram a ser realizadas nas cidades do interior do Estado, despertando grande curiosidade por parte da população, como foi o caso de Guarabira:
“No dia 2 do corrente mez realizou-se na importante cidade de Guarabira o primeiro casamento civil. A cerimonia, presidida pelo 1º Juiz de Paz, teve lugar no salão nobre da casa da Intendencia e em presença do Dr. Juiz de Direito da comarca, Dr. Juiz Municipal, Dr. Promotor Publico, do Conselho da Intendencia e de crescido numero de pessoas gradas. Como fosse dia de feira concorreram ao acto centenas de pessoas do povo naturalmente attrahidas pela curiosidade de conhecer as particularidades do ceremonial. Concluido o casamento, subiram ao ar muitas girandolas e, servindo-se da palavra, o Dr. Juiz de Direito, em breve eloquente discurso, salientou as vantagens do casamento civil, que em causa alguma era contraria ás crenças religiosas, e recomendou ao povo que confiasse no patriotismo e sabedoria do Governo e não se deixasse illudir pelos falsos prophetas que, como as sereias da fabula, com o seu cantar attrahem para o abismo e para a morte. Em seguida a essa allocução, dirigiram-se os noivos, com grande acompanhamento, para a Matriz onde um sacerdote catholico abençoou sua união”.
"Estado da Parahyba", 5 de agosto de 1890
A oposição dos padres às medidas republicanas se dava, na maioria dos casos, de forma reservada, no âmbito das igrejas, durante os cultos religiosos. Mas, alguns deles se manifestavam abertamente, com destemor, contra o novo regime e as suas medidas, como era o caso do pároco José Euphrosino de Maria Ramalho, da freguesia de Nossa Senhora do Livramento, na cidade de Bananeiras, na Paraíba.
Nascido na cidade paraibana de Conceição, o padre Euphrosino, após concluir os seus estudos no Seminário de Olinda, passou oito anos (1871-1879) na freguesia de Misericórdia (atual Itaporanga), inicialmente como coadjutor e, depois, como vigário. No final de dezembro de 1879, foi nomeado, através de Carta Imperial, para a paróquia de Bananeiras. Em uma das últimas legislaturas do Império, o padre Euphrosino Ramalho foi eleito para a Assembleia Provincial da Paraíba.
Após a instalação do regime republicano, o padre Euphrosino, começou a encaminhar cartas, com pedidos de publicação, para jornais da Paraíba e do Rio de Janeiro, manifestando-se, sem subterfúgios ou rodeios, contra a República e os atos do governo. Em maio de 1890, em carta publicada na seção “A Pedidos” do jornal Gazeta do Sertão, de Campina Grande, o pároco de Bananeiras contestava as medidas tomadas pela República:
“O Brazil não quer a separação da Igreja do Estado, antes a repelle [...] o Brazil não quer a liberdade de cultos, antes a repelle com horror [...] o Brazil não quer o casamento (?) civil, antes o amaldiçôa; porque crê firmemente que toda união de homem e mulher fora e contra as prescripções sagradas da Igreja Catholica é ilícita, é torpe e patente mancebia [...]”.
"Gazeta do Sertão", 9 de maio de 1890
Em jornais do Rio de Janeiro, os textos enviados pelo padre Euphrosino Ramalho contestavam os atos republicanos:
“[...] o povo nunca aspirou tal e tão desastrada reforma [...] que os senhores deste paiz reconheçam, ou não, a validade de seu casamento celebrado perante Deus, e sua consciencia, embora de encontro ao nefando decreto de 24 de janeiro deste anno [...] se o povo é soberano. seja desde já deportado ou banido o decreto de casamento civil, como impolitico, immoral, injuridico e attentatorio da soberania do povo”.
"O Cruzeiro", 7 de junho de 1890
“fazendo côro com os demais parochos deste inditoso pais, venha por minha vez erguer bem alto minha humilde voz, protestando por mim e meus bons parochianos (nemine discrepante) em nome do direito, da justiça, da moral e da recta razão contra todas as reformas iníquas e vexatorias, que para vergonha da humanidade têm emanado de um poder provisorio e desnaturado imposto á força de metralhadoras no intuito satanico de perseguir a nossa religião três vezes santa por meio de decretos ou leis (?) ímpias e oppressoras da consciencia e liberdade do cidadão”.
“O Apóstolo”, 2 de julho de 1890
Estavam marcadas, para 15 de setembro de 1890, as primeiras eleições da República, nas quais seriam escolhidos os parlamentares que iriam elaborar a primeira Constituição republicana. Sob a inspiração do bispo da diocese do Rio de Janeiro e com o objetivo de participar do processo eleitoral foi fundado, em maio de 1890, o Partido Católico, com abrangência nacional e utilizando-se dos vigários das paróquias para a arregimentação dos seus adeptos. O ideário do partido era divulgado pelas páginas do jornal católico “O Cruzeiro”:
“Vai em breve ferir-se a grande batalha eleitoral [...] Somos em grande numero [...] Em todos os Estados do Brazil, de sul a norte, convoquemos as nossas cohortes [...] Que não se perca um só voto. Escolhamos homens religiosos [...] Tudo depende da escolha. Os que querem prescindir de Deus no templo, no lar, na escola e até no tumulo, esses não podem aspirar o nosso suffragio [...] os catholicos devem protestar com o seu voto contra esses decretos iniquos que vieram ferir nossas crenças, postergar nossos direitos,abalar nossas consciencias e lançar a perturbação no seio da familia brazileira”.
"O Cruzeiro", Rio de Janeiro, junho de 1890
Na Paraíba, os vigários das paróquias se encarregavam de convocar eleitores para o Partido Católico e defendiam nas suas prédicas a importância da agremiação. Em Campina Grande, o vigário Luiz Francisco de Sales Pessoa (conhecido como Monsenhor Sales) assim se manifestou em uma missa realizada na igreja matriz:
“concluiu louvando os intuitos do partido catholico; aconselhando que o povo tivesse o maior escrupulo na escolha de seus candidatos, e sobre tudo, que não votasse nos candidatos protegidos pelo governo; porque não devia merecer confiança aos catholicos”.
De Bananeiras, o padre Euphrosino fazia a defesa dos candidatos do Partido Católico, mas, desconfiando dos resultados das eleições, alertava:"Gazeta do Sertão", 11 de julho de 1890
“toda essa pujança na organização do Partido Catholico será frustrada, ou pelo estrategico falseamento do resultado das urnas, ou (já que são positiveiros) pela positiva e franca imposição da força armada! [...] mas o dia 15 de setembro proximo encarregar-se-á de provar o nosso asserto... Esperemos ... Praza aos Céus que me engane, não vendo a consagração da revolta nefanda do nefasto e para sempre tenebroso, 15 de novembro de 89...”.
"O Cruzeiro", Rio de Janeiro, agosto de 1890
No pleito eleitoral de 15 de setembro, ocorreram as mesmas práticas que ocasionavam o “falseamento do resultado das urnas”, como antevira o padre Euphrosino. A República nada mudara com relação às “mentirosas urnas” do Império, como as denominara o senador dos tempos monárquicos Zacarias de Góis. Nenhum dos candidatos apoiados pelo Partido Católico foi eleito na Paraíba. Notícias publicadas no jornal Gazeta do Sertão informavam sobre episódios ocorridos em alguns municípios do Estado:
“Cabaceiras, S. João do Cariry, Alagoa do Monteiro – Nessas tres comarcas absteve-se das urnas o partido catholico, apesar da sua reconhecida maioria. As ameaças, a pressão exercida pelos agentes do governo para com o eleitorado e outras circunstancias, motivaram esta attitude dos respectivos vigarios [...]”.
“Ingá – Nessa comarca conta o eleitorado catholico com mais de dois terços do eleitorado graças ao activo trabalho do distincto vigario José Alves Cavalcante de Albuquerque [...] mas os agentes do governo tudo burlaram com a execução do seu ignobil plano. Na 2ª secção da villa, a mesa propositalmente não quis reunir-se afim de não haver eleição; certa como estava que quase todo eleitorado era catholico”.
“Ingá – Nessa comarca conta o eleitorado catholico com mais de dois terços do eleitorado graças ao activo trabalho do distincto vigario José Alves Cavalcante de Albuquerque [...] mas os agentes do governo tudo burlaram com a execução do seu ignobil plano. Na 2ª secção da villa, a mesa propositalmente não quis reunir-se afim de não haver eleição; certa como estava que quase todo eleitorado era catholico”.
Um jornalista da Gazeta do Sertão, de Campina Grande, sintetizou, de forma precisa e cristalina, o que ocorrera naquela eleição:
“O governo nomeia as intendencias. As intendencias nomeiam as mesas eleitoraes. As mesas eleitorais nomeiam os deputados. Os deputados approvam os actos do governo. E de tudo isso o corpo eleitoral é apenas testemunha”.
"Gazeta do Sertão", 26 de setembro de 1890
Apesar do insucesso na sua resistência à República e ao casamento civil, o padre Euphrosino Ramalho permaneceu exercendo o sacerdócio na paróquia de Bananeiras até a sua morte, em 1905.
Em 1883, o padre Euphrosino deu a extrema-unção ao venerando Padre Ibiapina, que faleceu na sua paróquia, na Casa de Caridade de Santa Fé, onde foi enterrado. Quando o padre Euphrosino faleceu, o seu corpo foi sepultado, a seu pedido, no mesmo lugar do reverenciado missionário Ibiapina. O escritor Ramalho Leite fez afixar no local, em nome da sua família e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, uma placa em homenagem a José Euphrosino de Maria Ramalho, pároco de Bananeiras por 25 anos e deputado provincial.