"E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido"
(Chico Buarque)
E se acabou no chão feito um pacote flácido"
(Chico Buarque)
Eram amigos desde os tempos da bola de gude e de empinar pipa nos frios e ventos de julho. Regulavam de idade. Cresceram carne e unha, amigos inseparáveis. Escolheram ambos, profissão de pedreiro e eram respeitados no ofício. Sabiam assentar azulejos e imprimiam qualidade nos serviços, fossem dos mais triviais, como o assentamento de tijolos, aos mais sofisticados a exemplo dos acabamentos que exigissem caprichos e mãos hábeis. Para quem não sabe, assentar azulejo não é para pedreiro meia colher, exige competência no ofício. Uns danados, Tonho e Juca.
Eram compadres. Tonho batizou um bacuri de Juca e este compadre levou à pia uma maricotinha de Tonho. Moravam na mesma rua, quase de frente um para o outro.
Todos os dias de trabalho, de segunda à sexta-feira, depois da lida batiam ponto no boteco de Manezinho Perna Torta para o dominó, o truco e umas lapadas de cachaça. Umas? Umas, não. Muitas! Era quando enfiavam o pé na jaca e chegavam em suas casas lá pelas dez da noite mais para lá do que para cá. Bêbados de fazer gosto. Mas no dia seguinte nem parecia que haviam entornado o caldo na noite anterior. Estavam prontos para o batente. Eram responsáveis e não me consta que a carraspana da noite anterior os fizesse faltar às obrigações.
E os fins de semana? Aí era o que Deus quisesse, o céu era limite. De onde acham que veio o apodo de Tonho? O de Juca poderia ser o mesmo ou similar, mas a cabeça era de tal forma avantajada que prevaleceu como apelido.
Tanto Dona Gumercinda, a mulher de Tonho, como Dagmar a de Juca, não viam com bons olhos aquela amizade. Nenhuma delas sabia quem é que levava o outro para o mau caminho. Isso um dia ainda vai acabar mal, dizia uma. Também acho, confirmava a outra. E sabem como é, praga de mulher quando está de bico virado não há quem possa desfazer. Foi o que aconteceu.
A tal da pinga é capaz de tirar responsabilidade de um homem de bem. Todos sabemos disso e nossos amigos começaram a beber no serviço. Um dia um golinho para rebater o frio, no ouro dois porque o Vasco foi rebaixado mais uma vez (eram vascaínos doentes) e assim foram. Receberam advertências dos patrões e prometeram que “aquilo” não ia acontecer novamente. Mas, aconteceu.
Um belo dia, na hora do almoço quando abriram suas marmitas e comeram feijão com arroz como se fossem príncipes, tomaram uma meiota cada um. Ficaram daquele jeito. Acontece que estavam num andaime no 25º andar e dessa vez não houve santo que ajudasse, o andaime balançou, Tonho conseguiu se segurar, mas Juca flutuou no ar e foi falar com Deus.
Juca era homem querido. A turma do boteco de Manezinho Perna Torta compareceu ao velório, o pessoal da firma também, do servente ao encarregado, mais a vizinhança e parentes. Muita gente para chorar aquele defunto. Mas cadê o Tonho? Deve estar traumatizado, eram tão amigos, comentavam. Quase na hora do padre fazer a reza, Tonho chegou. Silêncio e os alhares para o amigo inseparável que chegava bêbado como um gambá e choroso como menino manhoso. Veio para bem perto do falecido, beijou a testa amassada do amigo e dirigiu o olhar à viúva. E …
— Antes de morrer, as últimas palavras de Juca foram para mim. Vocês querem saber o que ele disse?
Uns ficaram incomodados com o que aquele bêbado poderia dizer. Outros curiosos, já que Tonho estava presente no instante da tragédia.
— Comadre Dagmar, antes de morrer ele falou comigo. A comadre não quer saber o que ele disse? – Dagmar ali sem forças para responder, só fazia chorar mais ainda.
Silêncio geral. Diante do estardalhaço, as pessoas foram se achegando curiosas.
— Já disse, as últimas palavras do Juca, meu amigão do peito, foram para mim. Preciso dizer pra vocês.
Então, o padre interveio.
— Meus irmãos, todo mundo aqui na comunidade sabe que Juca e Tonho não eram apenas compadres, eram quase irmãos. Diga Tonho o que Juca falou para você antes de cair daquela altura?
Então, Tonho, tão bêbado como naquela hora fatídica, revelou as últimas palavras do amigo:
— Juca disse assim: Tonho seu safado, para de balançar o andaime senão eu vou cair.
Foi o que me contaram.