Os rabiscos do lápis comum de ponta afiada aparada com gilete feitos num cantinho da folha em branco parecem ganhar vida, movimentos animados. O olho reconstitui um retrato mal falado da rua, das flores, dos presentes de hoje, de ontem e até de amanhã. A cabeça gira, se afasta, retorna recapturada pela música que toca baixa, mas que alcança a altura do espírito viajante.
Sob o comando da mão canhota o lápis desliza em curvas, retas, raspadas, em traços uniformes e descompassados. Por vezes, lembra o gestual de um maestro e sua batuta, um único ser, a criar com movimentos, formas e conceitos em sons e figuras. É brincar de dar vida e reproduzir criações.
E surgir uma rua antiga que retoma a beleza de outrora a cada novo traço e giro do lápis. Reaparece o movimento de pessoas aleatórias. Uma senhora a caminhar ao longe, um carroceiro e sua labuta diária para sobreviver, um homem ainda calçado de sapato bico fino e de paletó de linho branco e chapéu pananá. Postes a óleo como obras de arte perfilados ao longo do passeio público, a guardar o casario bem pintado e conservado a exibir um charme próprio de sua época ida.
Renascem em rabiscos o que já foi chamada de Rua Direita, as ainda de nome Trincheiras, Areia... entretanto, que foi tendo o brilho retirado pelo esquecimento humano ao longo das décadas. Endereços mantidos mesmo com a chegada da ruína.
Mas no papel o lápis obedece a mão que deseja ressuscitar tempos e recria feito um storyboard de um filme do que já se revelou. Lá, na folhinha de papel em branco, estão os trilhos do bondinho a fazer uma curva à direita na esquina da Academia do Comércio Epitácio Pessoa logo após passar pelo Pavilhão do Chá, as pedras do calçamento a emitir um som especial ao contato com os cascos dos cavalos a puxar veículos pesados, ou o matraquear dos motores dos primeiros carros.
Dá para perceber um vendedor de algodão doce e de rolete de cana a ganhar o pão de cada dia nas tardes de domingo enquanto casais moços passeiam. Os parques de diversões da Festa das Hortênsias, da outrora pomposa Festa das Neves.
A ponta do lápis segue com agilidade a mover a máquina do tempo. Saltam velhas máquinas carnavalescas no corso pelas ruas centrais, os bailes com as moças e seus vestidos enormes e até o olhar de flerte. Ali está o garoto de calças curtas magrelo a correr, a menina de tranças milimetricamente feitas. Dá para até sentir a brisa noturna a correr pela cidade baixa quando a cidade tinha até outro nome.
A mão desgastada pelo tempo mantém uma firmeza que impressiona. É perceptível os cabeços brancos sobre um chapéu que parece não sair daquela cabeça há décadas. Parte das imagens nem o autor testemunhou. Melhor, as viveu pelos olhos e memórias orais dos pais, avós, fotografias velhas, recortes de jornais. Com o traço do lápis pontiagudo resgata a cidade cujas pedras desmoronam. Dá vida ilustrada em rabiscos caprichados ao que só deixou de existir no concreto, mas que bate vivo no seu coração.