Quem somos nós, assim encerrados em corpos sexuados, construídos enquanto natureza, passageiros de identidades fictícias, construídas em c...

Pós Oito de Março

feminismo protesto mulheres marcha
Quem somos nós, assim encerrados em corpos sexuados, construídos enquanto natureza, passageiros de identidades fictícias, construídas em condutas mais ou menos ordenadas? Quem sou eu, marcada pelo feminino, representada enquanto mulher, cujas práticas não cessam de apontar para as falhas, os abismos identitários contidos na própria dinâmica do ser.
Tânia Swain

Passado o Dia Internacional da Mulher, mas ainda em Março, fico a observar os posts no Facebook, comentários na mídia em geral, até mesmo no alô cotidiano sobre as Mulheres (Dia da Mulher é todo dia!), e fiquei matutando alguns comentários e constatando como ainda teremos séculos de anos-luz para decifrar enigmas, internalizar igualdades, e espantar preconceitos entranhados até o âmago das profundezas dos nossos mares sombrios e tenebrosos.

Deu gosto de ver as mulheres nas ruas, nos idos de 2017, há cinco anos. Havia certo frescor em derrubar alguns estereótipos, reivindicações antigas e outras nem tanto, uma selvagem alegria nas celebrações, ao mesmo tempo garra e assertividade nas ideias, E aquele mar de mulheres fosse nos boulevards parisienses, fosse nas avenidas londrinas, na Av. Paulista, ou na Lagoa em João Pessoa. O mundo todo se moveu para – Nenhuma a Menos!

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2017 ▪ Marcha das Mulheres ▪ Washington (EUA) ▪ V. Tchompalov
Na contramão, o então Presidente da República, Michel Temer, tropeçou num absurdo anacrônico e referendou um modelo de mulher lá do século dezessete, atribuindo valores de que as mulheres entendem de economia das prateleiras do supermercado, ou ainda da sala de jantar, como bem analisou esse reducionismo, a historiadora francesa Michelle Perrot: “O destino da mulher é a família e a costura{...} Ao homem, a madeira e os metais, à mulher, a família e os tecidos”.

Em pleno século XXI, não podemos ficar sendo lembradas somente por essas "maiores qualidades femininas". O trabalho, a realização e reconhecimento profissional, a maternidade, o amor, o prazer do nosso cotidiano, a sororidade, o empoderamento, o respeito, o basta à violência doméstica, aborto, meu corpo, minhas regras, direitos todos, igualdades de salários... e tantas outras urgências nos faltam. Como autoridade maior do país (mesmo a nosso contragosto),
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Josh Howard
ele não poderia ter ficado arraigado a um modelo feminino que teve seus áureos tempos nos longínquos séculos passados.

E entendemos mesmo dessas economias de supermercado! Mas aquele discurso de Temer não foi no sentido de que somos múltiplas e damos contas de tantas jornadas, mas sobre aquele de ideal da “Fada do Lar”, que Virginia Woolf retrata, em seu ensaio “Profissões para Mulheres: “Ela era intensamente compreensiva. Ela era imensamente charmosa. Ela não era nada egoísta. Ela se superava na difícil arte da vida familiar. Ela se sacrificava diariamente {...} Ela nunca tinha opinião ou desejo próprio, mas preferia ser compreensiva sempre para com as mentes e os desejos dos outros". Ou ainda como Michael Cunningham o fez em seu romance As Horas, numa crítica à prisão doméstica da mulher americana dos anos 50, representada pela personagem de Laura Brown (Julianne Moore):

“Eis aqui um espírito brilhante, uma mulher cheia de dores, uma mulher de alegrias transcendente, que preferia estar em outra parte, que consentiu em executar tarefas simples e essencialmente tolas, examinar tomates, sentar-se embaixo de um secador de cabelo, porque é sua arte e seu dever.”

A economista Miriam Leitão sugeriu no seu blog que a gafe do presidente, se é que podemos denominar assim, fosse “desinformação”. Mas alguém retrucou com propriedade. ”Não, Miram Leitão, não foi por "desinformação" que Temer reduziu a mulher à compras no supermercado, cuidar da economia doméstica e da educação dos filhos. Não é porque "não o informaram" que o mundo mudou e as mulheres foram à luta. Do mesmo modo que não é por desinformação que Bolsonaro diz as barbaridades que temos sido obrigados a ouvir. É cabeça retrógrada, miúda mesmo, é não admissão dos avanços feministas, em função de seu significado ameaçador a séculos e séculos de supremacia dos ideais machistas.”

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2017 ▪ Marcha das Mulheres ▪ Londres ▪ Clem Onojeghuo
Mulheres! Somos a maioria. E sem nós o mundo haveria de parar. E parou naquele dia 8! Para dentre tantas coisas lembrar do trabalho nosso de cada dia. Ainda! Como há algumas décadas escreveu a crítica feminista americana, Adrienne Rich:

“Através da curva da terra, existem mulheres levantando-se antes do amanhecer, na escuridão anterior ao ponto de luz, no lusco-fusco que antecede o alvorecer; existem mulheres se levantando antes dos homens e das crianças para quebrar o gelo, começar no fogão, fazer a papa, o café, o arroz, engomar as calças, entrançar os cabelos, puxar a água de beber do poço, ferver a água do chá, lavar as crianças para a escola, arrancar os legumes e começar a caminhada para o mercado, correr para pegar o ônibus para o trabalho pago. Eu não sei realmente quando a maioria das mulheres dorme. Nas cidades grandes, ao escurecer, as mulheres estão viajando para casa, depois de limpar escritórios durante a noite, ou encerando os halls ou hospitais,
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2018 ▪ LondresJ. Podraza
ou acompanhando os mais velhos e doentes e amedrontados na hora em que a morte está para fazer seu trabalho... Com luz mínima eu a vejo, cada vez mais, seu relógio interior a lhe tirar da cama com suas costelas pesadas e dolorosas, sua respiração a inalar vida no fogão, sua casa, sua família, a pegar a última brisa da noite no seu corpo, ao encontro dos primeiros raios do sol.”

Interessante que, ainda hoje escuto homens e mulheres dizerem: “prefiro feminina à feminista”, como se a escolha fosse excludente. Não é. E o que é ser feminina mesmo? Em pleno século XXI? Com certeza já estamos longe da Fada do Lar, de outras armadilhas meigas, ou da imagem da boa moça. Simone de Beauvoir já falava de uma moça bem/mal comportada nos anos 50! E sabemos nós mulheres que “as boazinhas vão para o céu, e as outras aonde quiserem!”

O mais irritante no entanto, é o discurso camuflado das mulheres machistas e o pior , aquelas que nem se dão conta disso, face às suas necessidades de negociar com o masculino. Para serem aceitas claro! Até entendo. Elas não querem se reconhecer com o “frágil e oprimido” aí acham que a saída é criticarem o “mimimi” das mulheres, os seus ritmos, suas subjetividades, e só reforçam à competitividade, o apego aos homens,
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2019 ▪ Cork, IrlandaN. Jilderda
e põem tapetes vermelhos para alguns, sem perceberem que esse tapetinho tem um custo: a negação de uma luta histórica. Se ajuntam às falas irônicas/perversas/misóginas de muitos homens machistas, para serem aceitas, em troca de darem as costas aos panos para as mangas seculares da luta feminina. Tenho irritação com esse desvio de percurso que só reforça à crítica de Virginia Woolf quando diz: “As mulheres são duras com as mulheres. As mulheres não gostam das mulheres”. E responde: “Gosto das mulheres. De sua informalidade. Gosto de sua inteireza. Gosto de seu anonimato. Gosto...”. Particularmente me identifico com sua empatia, embora reconheça que, no meu cotidiano, também tenho meus machismos seculares tatuados no meu corpo. A diferença é que, se toma consciência. E se rechaça!

Outras falas, não escondem a sua misoginia. Bem que tentam disfarçá-la através de uma agressividade permissiva, ou de um humor inaceitável.

Sim, as marchinhas de carnaval são machistas. E cantamos por uma dezenas de anos que, “... Nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia/”. O mundo era o da segregação, do preconceito, do machismo inaceitável, e tudo tão naturalizado que nós negras e mulheres e gays cantávamos também: “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é.” Hoje são realmente inaceitáveis.
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2020 ▪ Londres ▪A. Unuabona
Mas nem sempre o politicamente correto é a saída. Tão pouco podemos mudar todos os tratados e todas as letras, mas convenhamos que não dá para cantar da mesma forma: “Amélia que era mulher de verdade”! Podemos até cantar, mas sabemos que a mulher, hoje, está nas ruas, defendendo a Marcha das Vadias.

“Em todos esses séculos, as mulheres tem servido de espelhos dotados do mágico e delicioso poder de refletir a figura do homem com o dobro do seu tamanho natural... qualquer que seja seu emprego nas sociedades civilizadas, os espelhos são essenciais a toda ação violenta e heroica. Eis por que tanto Napoleão quanto Mussolini insistem tão enfaticamente na inferioridade das mulheres, pois, não fossem elas inferiores, eles deixariam de engrandecer-se.”
Virginia Woolf

Alguns outros têm uma raiva tão insuportavelmente lacrada nas vísceras que, disfarçadas de humor ferino e gargalhadas rebeldes, bradam suas raivas pensando que, ao elevar as mulheres chamadas por eles de vida fácil (denominando-as de fuleiras, raparigas, quengas), estariam fazendo alguma revolução. Mal sabem eles que essas mulheres "fuleiras e Raparigas" foram assim denominadas pelos homens! Já pelas mulheres e pelo Movimento Feminista elas não só são defendidas, estudadas e respeitadas, como também fazem parte importante da agenda de reivindicações.

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Aiden Craver
Foram as Feministas, sim, que deram voz às prostitutas! E não os “homens na esbórnia”, exaltada nessa mesma fala. Eu mesma participei com o Cunhã Coletivo Feminista, de um Encontro de Prostitutas, em Jacumã, em 1993, em que se discutiram exaustivamente reivindicações dessas mulheres, tais como Segurança, Seguridade, Respeito, Previdência e Violência. Ao exaltar as putas, em face ao aconchego que dão aos “homens solitários e bêbados”, pude sentir a repulsa e raiva inconscientes, ou no subtexto que legitima como uma luva o seu próprio teor! E quando respondemos, ou mostramos a nossa indignação, somos tachadas de que não temos humor e/ou de patrulha/policiamento. Humor, quando vem recheado de preconceito e misoginia, a gargalhada sai pela culatra. Falo do lugar de uma mulher branca, que teve acesso às escolhas e, mesmo assim, percebo, infelizmente, que nem todos os séculos serão capazes de apagar a cor púrpura que nos encharca!

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2020 ▪ Londres ▪ Akhere Unuabona
Entre a chuva de preconceitos explícitos ou camuflados nas flores e bombons, eis que me deparo com agressões com mãos de pelica. Comenta-se da grandeza das mulheres, mas não sem antes agredi-las denominando-as de: “pé-no-saco, irritantes, diabólicas, pentelhas, chorosas, melosas e crocodilas, histéricas”. Seria no mínimo grotesco, não fosse trágico. Interessante, pois se somos “pé no saco, diabólicas, pentelhas, choronas e melosas”, mesmo assim preenchemos os vazios masculinos! Que fuerza temos, non? Há de se perguntar que seres mimados seriam esses para se deixarem iludir tão infantilmente! E correr atrás dessas “pentelhas melodramáticas” tão incansavelmente! Nem precisa ser especialista em análise do discurso para ler que, antes da homenagem, é preciso um tabefe com mãos de pelica para colocá-las nos seus “devidos lugares”.

Essas falas são pequenas amostras de que, pelo menos aqui, continuamos no século dezessete em algumas ideias, que, camufladas de brincadeiras ou jogos irreverentes,
Tandem X
são acintes que, não é por falta de humor, mas por termos consciência de uma opressão milenar que, não devemos aceitar caladas, ou fazendo de conta que certos discursos são inofensivos. Não são! Tem voz e sentido!

A Agenda Feminista continua lotada de velhos e novos desafios. Os abismos existem. Os avanços então? Muitos! Mas em certos discursos arcaicos e arraigados de ódio, humores mais que rancorosos, e ironias cheias de chistes des-qualificatórios, a palavra da hora é NÃO! Minha luta, meu desagravo! E que venham as jovens mulheres com seus mamilos em riste, suas bandeiras, seus frescores, suas irreverências, onde não cabe mais rancores e recalques milenares.

Viva nós! Mulheres des-leais, des-interessantes, fortes/ frágeis, não-violentas, in-sensíveis, e diversas. E humanas!

Eu, nômade, sou outra, além daquilo que pareço ou do que falo. Eu sou um espaço de mim, migratório, de transição, nesta cartografia que me revela e me nega. Eu sou o espelho de mim, um lugar sem lugar... Sou, porém, nômade, e nesta concretude é apenas o reflexo no espelho, pois este ´eu` que vejo refletido não sou ´eu`. Este ´eu` forjado em valores e normas históricas, por teorias e discursos de saber, por limites e entraves erigidos em sexo e sexualidade não sou eu: é apenas uma passagem, um momento de mim. Na imagem invertida no espelho vejo apenas a imitação de mim em um eu unificado, categorizado, tão ilusório quanto as dimensões que se abrem na superfície polida (Tania Swain).
Fontes e citações (tradução livre)CUNNIGHAM, Michael. As Horas. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
RICH, Adrienne Notes toward a politics of location. In: Lewis, Reina & Mills, Sarah. Feminist Postcolonial theory: a reader. Edinburgh: Edinburg University Press, 2003.
SWAIN, Tania. “Meu corpo é um útero?” Reflexões sobre a procriação e a maternidade”. In: Stevens Cristina (Org.) Maternidade e Feminismo: Diálogos Interdisciplinares. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres/EDUNISC, 2007. WOOLF, Virginia. Um Teto Todo Seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
_______”Professions For Women”. In: Virginia Woolf on women & writing. Great Britain: The Women´s Press Ltda, 1996.

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  1. Maravilhoso 👏👏👏👏👏👏👏🙏🙏🙏🙏🙏🙏🙏🙏

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