Na Ucrânia é inverno, longo, gélido, com ventos fortes e céu encoberto. A noite chega mais cedo e, após um prato quente de Borscht, todos os habitantes se recolhem. Há uma inquietação no ar, própria das incertezas, mas rezam confiantes. Na capital Kiev, o Anjo da Guarda, Padroeiro da cidade, é lembrado e solicitado como protetor. Alguns ainda acreditam no homem que se considera Deus, e no seu olhar frio e ausente, com a “negação afirmativa”, típica dos psicopatas, com reações inflexíveis às situações, às pessoas e à sociedade.
A ambição desmedida de eternizar-se na história, um narcisismo ilimitado, um poder quase intransponível, um desejo perverso de conquista pela força. O ruído das bombas acorda às cinco horas da manhã, a pacífica população.
“Nada na história serve para ensinar aos homens a possibilidade de viverem em paz” (Paul Valéry)
O ataque múltiplo por terra, ar e mar gera pânico generalizado. A desorientação seguinte leva pessoas às ruas, perdidas, em choque, sem palavras para expressar a surpresa e o desespero. Os jornalistas se aproximam e arriscam a vida para conseguir as melhores fotos e testemunhos. Uma senhora idosa, caminha trôpega entre os destroços da sua (ex) casa. Seus pequenos olhos azuis, apertadinhos, não se afastam do lugar onde viveu por tantos anos. Suas mãos, enrugadas pelo tempo, unidas em prece, lábios finos que sequer conseguem balbuciar uma oração. Faz do seu espanto, um pedido de socorro. Um entrevistador tenta abordá-la, e só escuta uma frase que ela repete: Por quê, Por quê?
“A paz derradeira é a negação, exclusão ou extermínio de toda a guerra” (Kant)
Essa mesma questão foi remetida pela Liga das Nações a Einstein e Freud, em 1932, um físico e um psicanalista pacifistas. Na carta resposta de Einstein, ele defende que “A paz não pode ser mantida à força, somente pode ser atingida pelo entendimento”, reconhece a relação entre direito e poder, sugere a criação de tribunais para unificar as nações. Freud, por sua vez, na sua correspondência, recorda como os homens antes do processo civilizatório resolviam seus problemas, pelo emprego da violência. Encontramos opinião semelhante do filósofo e teórico político que o antecedeu:
“Sendo o corpo o único instrumento que o homem selvagem conhece, é por ele empregado de diversos modos. Se tivesse um machado, seu punho romperia galhos resistentes, se tivesse uma funda, lançaria com a mão, daí o homem civilizado com todas essas máquinas à sua volta, não se poderá duvidar que com isso, sobre passe, com facilidade, o homem selvagem” (Rousseau).
“As novas armas fazem com que a superioridade intelectual tome o lugar da força física, continua Freud. A morte do inimigo dá “exemplo” e desestimula outros. Mas antes de tudo, satisfaz a Pulsão de Morte, que existe em todos nós”. Sua exposição é pessimista quando se desculpa com Einstein sobre a “utopia” da paz. A solução seria estimular a Pulsão de Vida (Eros), com trabalho, criatividade, arte... “Tudo que promove a evolução cultural também trabalha contra a guerra”.
E após dias de combate, a guerra segue seu curso desumano. Estamos em março. Reuniões de representantes da Rússia e da Ucrânia se sucedem, quase diariamente, sem perspectiva de acordo. O invasor quer tudo, a submissão total, o reconhecimento de todas as suas demandas.
O agredido tenta manter sua dignidade, sua terra, seus limites. Sua liberdade de escolha. Onde está a força da linguagem nas reuniões de acordo de paz? Não foi através dela que saímos da comunicação animal, instintiva, irracional? Onde está o homem consciente de tudo que já viveu na primeira e segunda guerra mundial? Onde está o respeito humano, principalmente por civis, idosos e crianças? Onde está a preservação das obras de arte, museus, esculturas protegidas por sacos de areia, da insanidade? E o risco de destruição da casa Gorodetsky (Casa das Quimeras), a catedral belíssima de Santa Sofia?
E a fé? Igrejas bombardeadas, mosteiros? O que dizer do ato de atacar hospitais, sequestrar médicos e pacientes? Atingir até um hospital psiquiátrico, onde a razão passa ao largo?
E os campos produtores de grãos, e até como na Rússia, as extensas plantações de Girassol? Nada ou ninguém serão suficientes para deter um só homem? Que anti-heroi é esse, que se empodera dos mais fragilizados, que não estão no front?
“O homem é o lobo do homem” (Hobbes).
É difícil reconhecer em cada um de nós, que estamos distantes da perfeição e da bondade... que existe a falha, e sobre ela Lacan nos ilumina. Os próprios combatentes russos, sacrificam suas vidas, pela “falha” do líder.
Um jovem soldado ucraniano, expondo-se às bombas e mísseis inimigos, entra numa pequena casa, semidestruída, para salvar uma mulher e seus filhos pequenos. Seu ato de bravura, foi filmado e divulgado pelos meios de comunicação. A criança menor, uma menininha, faz perguntas ao rapaz, sobre o que seria o seu capacete...ele delicadamente responde. Mas, na saída apressada ele diz à mulher: Solte o cachorro! E partiram... O que se poderia pensar? Um ato de caridade, para que livre, o animal sobrevivesse ao fogo das armas, à sede, fome, abandono?
Assim estão todos...à espera de um milagre, de um Anjo Salvador que restitua a identidade, o lar, a vida!
“Ninguém é dono de sua felicidade, por isso não entregue a sala alegria, a sua paz, sua vida, nas mãos de ninguém, absolutamente ninguém” (Aristóteles)
A coragem de cada morador ucraniano, fala da impotência de todos nós diante da iminente fatalidade. Enfrentam com dignidade e amor pelo país, com um líder improvável, que se humaniza, e se agiganta.
Continua a chover na Ucrânia. A neve cai, um cenário belo e trágico. Um frio intenso perpassa os corpos dos que lutam e dos que se escondem. O frio que também constitui o coração do invasor.
No solo, o verde dá lugar ao cinza da lama, e do que é queimado junto. Nas depressões causadas pelos mísseis e bombas, cai lágrima e sangue inocente. Kiev, se prepara para o provável embate final. E, enquanto espera, todos nós questionamos repetidas vezes: Por quê, Por Quê?
“A guerra é um massacre entre pessoas que não se conhecem para proveito de pessoas que se conhecem, mas não se massacram” (Paul Valéry).