Nas manhãs de caminhadas, até pouco antes da pandemia, não conto as vezes que entrava no Mercado, munia-me de uns bons punhados de milho o...

O sol num grão de milho

poesia florbela espanca rustica
Nas manhãs de caminhadas, até pouco antes da pandemia, não conto as vezes que entrava no Mercado, munia-me de uns bons punhados de milho ou xerém grosso, e prosseguindo até a praça, sob o afago das árvores, fazia vir a mim a primeira nuvem de pombos que, batendo as asas, baixava a meu redor mal despachava a primeira remessa.

Olhando de fora ou se achando lá dentro, não havia quem visse ali um pombal.

Centenas. Camuflavam-se no arvoredo e somente o canto agudo do concriz, lá em cima, o andar da lavandeirinha subindo e baixando a cabeça a cada passada (me lembrando o andar de meu jovem compadre João Manuel),
somente eles e outra criatura de outra espécie, um homem nu de cintura para cima, se via a sono solto num dos bancos.

A rua que rodeia a praça é de poucas moradas, a Igreja de um lado, esperando com uns poucos a hora de abrir; a sede da UNIMED noutra esquina, e das pessoas ilustres, do seu vistoso sobrado mais ao lado, o dr. João Rezende, antigo advogado e pessoa cordial, suponho que a essa hora ainda recolhido.

Restam alguns grãos para os que não baixaram da primeira revoada. Uns se apertam entre os mais ativos, bicam às cegas, alguns outros, talvez mais tímidos, correm por fora como se o que tem de ser do pombo nenhum gavião toma. Quem lhes dava o milho neles se identificava. Intimidava-se com o arrojo da corrida ou da concorrência, até que lhe caísse o grão merecido. Para eles, cautelosos, eu sempre deixava o seu punhado.

E ali abstraía a velhice de ânimo cansado sob os poderes de alguns caroços de milho. Um grão apenas, e lá vem uma página sobrevivente de uns cento e vinte anos: “Vai-se a primeira pomba despertada... / Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas” ... Para terminar como alguns retardados ainda se lembram: “No azul da adolescência as asas soltam, / fogem... Mas aos pombais as pombas voltam / e eles (os sonhos) aos corações não voltam mais.”

Pura alienação, há quem diga assim. Mas a vida se compõe também de alienados. Entre eles é muito mais fácil achar quem descubra vida numa semente, numa criança fugindo a bombardeios ou nas que sobreviveram da fome e das invasões, do que em quem nos aterrorize. Todo o gás e todo o petróleo da terra não vale um grão de milho.

Reparemos bem se vale:

“Ser a moça mais linda do povoado. Pisar, sempre contente, o mesmo trilho, Ver descer sobre o ninho aconchegado A bênção do Senhor em cada filho. Um vestido de chita bem lavado, Cheirando a alfazema e a tomilho... — Com o luar matar a sede ao gado, Dar às pombas o sol num grão de milho... Ser pura como a água da cisterna, Ter confiança numa vida eterna Quando descer à "terra da verdade"... Deus, dai-me esta calma, esta pobreza! Dou por elas meu trono de Princesa, E todos os meus Reinos de Ansiedade.”

Eu dava o milho e nisto colhia meu grão de felicidade, longe de supor que viesse alguém dar às pombas o sol num grão de milho. É obra de uma engenhosa moça portuguesa, Florbela Espanca, morta aos 35 anos, em 1930.

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