Dimas Batista de Toledo era (para não deixar em desuso um velho jargão do economês) um classe-média-baixa originário do serviço público. Aposentado, complementava o orçamento com alguns trabalhos contábeis.
Estabelecemos as nossas paralelas a partir de A União de Juarez Batista com um irmão do dr. Osias, Odemar Nacre Gomes, na gerência. Eu me firmando na redação e Dimas do outro lado, na parte contábil. Era ele quem fazia a folha de pessoal, espantando-se, um belo dia, quando entrei esbaforido à sua procura e mandei duplicar o salário geral, que era uma miséria e ficou um pouquinho acima do nível corrente na praça.
Estávamos no governo de Pedro Gondim, sensível àquele dia-e-noite de jornal, das linotipos escaldantes, das velhas impressoras, incomodando a vizinhança da praça com o roncar e as cilindradas das nossas velhas máquinas. Cumpre lembrar que o governador morava no Palácio, sofria de insônia, sendo difícil a madrugada que não telefonasse para alguma pergunta ou recomendação. Por conta disso Manuel Costeira Neto fazia do sofá da diretoria seu leito cativo.
Bem... Um dia em que Hilton Marinho foi ao Rio e deixou comigo as chaves da diretoria, dando-me carta branca, corri a dr. Pedro, dosei a insônia dele com a penúria dos que moíam o jornal e arranquei a aprovação de uma folha que faltou pouco para dobrar os salários. Gritei para Dimas que a refizesse antes que o chefão pudesse se arrepender.
E na minha caminhada de idoso volto a ver Dimas a pedalar tranquilamente a bicicleta que o conduziu sem ambições pela vida inteira. Nas últimas décadas, era assim que nos encontrávamos. Eu esticando as pernas ao sol da manhã, ele pedalando franciscanamente em demanda da sala que mantinha na Torre, o cabelo penteado para trás, bem preto, liso e brilhante.
Aí veio uma moto negra, envenenada e partiu-lhe a vida que tinha tudo para ser longa e bem conservada. Moto embesourada que irrompeu subitamente ninguém viu de onde.
Da minha mesma idade, Dimas vinha sabendo se conciliar com o tráfego do automóvel. Seguia a sua trilha e o carro a dele, os sentidos de defesa cada vez mais se adaptando. Não contava com o invisível.
É que nesta quinta-feira, ao sair da Unimed, cruzei na porta com uma cópia perfeita de Dimas. Quase o chamava. O mesmo cabelo, o mesmo rosto até onde a máscara permitiu reconhecer. Mas aí vem o corte da lembrança triste.
Cruzo a rua que contorna a praça e me vejo sob as cássias de teto alto e amplo de agora, preso à súbita lembrança de Dimas e, aos poucos, a seu contemporâneo remoto refugiado naquele mesmo túnel verde, infiltrado de sol, próximo do pequeno chalé onde morei menos de ano e, não sei por que sempre me surge como reprise de alguma incerteza.