É espantosa a força ou a permanente novidade de certos livros. Li “O vermelho e o negro”, de Stendhal, na idade exata do seu protagoni...

Livros da vida inteira

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É espantosa a força ou a permanente novidade de certos livros.

Li “O vermelho e o negro”, de Stendhal, na idade exata do seu protagonista. Ele no 1830, a viver febrilmente o longínquo 18 Brumário do jovem general Bonaparte; eu aqui no bairro da Torre, 120 anos depois e na sua mesma idade, querendo atalhar seus passos, pois antevia, afundado na leitura, que pelo tipo que se desenhava, pelo seu bonapartismo, iria, como se impusera, colar o rosto e beijar a mão da patroa, a nobre e belíssima sra. de Renal, mulher do prefeito, em cuja casa havia pouco o acolhera como preceptor das crianças. O cálculo, o ímpeto,
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Luis Felipe Lins
o voluntarismo do caráter de Julien Sorel atemorizavam, na vida real, o menino de vontade fraca que sempre fui.

Esse livro ficou aberto em mim para toda a vida. Não que pudesse converter-me num Julien — a vida imitando a arte — longe disso, mas pela viva experiência de humanidade que a arte do romance representa. Não aconselha, não ministra, não convence pelo discurso ou pela retórica: faz-nos ingressar no interior mais escondido do caráter humano. Pode-se tomar o avião para ver a Rússia ou sua irmã de mistura eslava, a Ucrânia. Ver como delícia ou espanto dos olhos; mas para conhecê-la por dentro, na alma do seu povo, basta seu romance, desde o russo que faz recuar o imperialismo de armas e de tropas de um Napoleão ao que chega primeiro no cerco fatal ao bunker de Hitler.

São livros como esse, alojados e escondidos no subterrâneo do nosso espírito, dos quais nunca nos livramos. E que atuam até nas mínimas coisas sem que disso se possa perceber.

Em crônicas repetidas tenho falado no meu apego por um trecho de rua da Torre, a Maroquinha Ramos, onde morei menos de um ano, que sempre me convida a passar por ele, a revê-lo. Um leitor já me escreveu
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perguntando o número da casa, que foi mudado. E como isto me tocou!

Pois bem: como justificar esse meu apego por um naco de rua onde, ao lado de minha mãe, passei as mais humilhantes aperturas? Pelo menos as de que mais me lembro desde que habito esta cidade.

Não faz muito tempo, passando por lá avistei da esquina uns homens serrando o flamboyant da calçada, onde tantas vezes vim respirar o livre acolhimento que a apertada morada não oferecia. Em 1953 essa árvore já me dava sombra. Não descansei enquanto não voltei à casa vizinha, bati palmas e pude ser atendido meio de longe. “O que o sr. quer?” De longe mesmo fiz meu apelo: “Vim pedir a senhora para não deixar derrubarem o flamboyant”. / “Mas o que é que o sr. tem com isso?”. Não soube responder. Era difícil explicar.

No outro dia voltei à esquina e vi que a boa senhora me compreendera. Foi lá que li “O Vermelho e o Negro”, a maior parte sob o amparo da árvore, única testemunha do embate ou das pancadas que recebi do preceptor bonapartista cujo final não inspira a menor felicidade.

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