Nas minhas aulas de literatura, costumo repetir, à maneira de um mantra, duas frases, que me parecem essenciais para quem quer lidar com o fenômeno literário na condição de leitor crítico ou de professor de literatura:
“Por melhor que seja a análise feita de uma obra literária, ela não substitui a sua leitura.”
“Não cedam à razão da autoridade, mas à autoridade da razão."
A primeira frase é para aqueles que esquecem que a leitura cuidadosa do texto literário é incontornável. E como texto ficcional, por definição transfigurador da realidade, deve ser lido várias vezes, se queremos ter um certo domínio sobre o que ele diz e o que ele esconde. Digo certo domínio, porque uma das características da ficção é o seu afastamento da realidade, por mais que possa, aparentemente, parecer com ela; outra característica é a sua recusa a ser totalmente apreendido. O texto que se faz apreender na sua totalidade está morto.
Ora, a recusa à realidade, que a ficção proporciona, não significa uma alienação, mas uma outra maneira de ver a realidade. Trata-se de um outro olhar que, muitas vezes, nos ajuda a ver melhor o que já estávamos cansados de ver. Valho-me de José Américo de Almeida, no seu precioso e imprescindível prefácio “Antes que me falem”, escrito para A bagaceira, a nosso ver, um sintético manual de teoria literária:
“O naturalismo foi uma bisbilhotice de trapeiros. Ver bem não é ver tudo: é ver o que os outros não veem.”
O olhar do professor, do crítico, do analista ou do leitor fruidor é sempre menor do que o olhar do ficcionista. E quando o ficcionista se decide a fazer uma obra de denúncia explícita, se a sua poíesis (ποίησις) – o ato criador, em essência – não for maior do que o seu engajamento, o seu olhar se apequena. É o que acontece com Aluísio Azevedo, que se amesquinha sob as imposições doutrinárias do Naturalismo, em O homem, mas se agiganta, quando vai além, em O Cortiço. Não só ele antecipa, nas transformações da antiga estalagem em avenida, as reformas de Pereira Passos, no início do século XX, no Rio de Janeiro, mas também ele dá o salto, criando, na figura do antigo vendeiro João Romão, o Visconde, que ascende pela exploração da mão-de-obra e do acúmulo de capital, realizando um romance moderno avant la lettre, ainda que a obtusidade de alguns o queira naturalista.
Eis a grande lição crítica que parte de um ficcionista e não de um crítico literário. José Américo, ao escrever e publicar A bagaceira, mudou o rumo de uma literatura enfronhada nas franjas do mundo urbano, como se não existisse Brasil além do Rio de Janeiro ou São Paulo, apesar do enorme esforço e da grandeza do projeto literário de José de Alencar. Ou pior, como se o Brasil, para além do litoral – ninguém leu a maravilha que é “A Terra”, primeira parte de Os sertões? –, não só fosse inexistente, mas, sobretudo, não desse assunto para uma criação literária de alta qualidade.
Melhor do que ninguém, Euclides da Cunha sabia o que estava fazendo. Por isto mesmo, não se contentou em uma descrição morta e insossa para nos dizer o que era o sertão nordestino e, mais especificamente, o da Bahia. Aviventou-o, tornou-o dinâmico, fê-lo ressoar, na descrição brilhante da enxurrada que começa com um pingo de chuva, que sequer chega ao chão, ou no voo das maritacas. Fez-nos sorver e sentir o acidulado das folhas do umbuzeiro com o gado; fez-nos sentir o calor abrasador dos ares urentes e do terreno adusto, “no martírio secular da terra”, e, por fim, colocou-nos como observador privilegiado da luminosidade de um sol sertanejo, crestador, mas que proporciona a vida, porque a vida não se entrega. É assim que o líquen ataca a pedra, a rocha, aparentemente, estéril. Um sertão inapropriado e inatural à vida, mostra-se, paradoxalmente, um viveiro que não se curva. Este maravilhoso paradoxo, as antíteses vivas – “A natureza compraz-se em um jogo de antíteses” –, os oxímoros à flor da pele agiram sobre o escritor, entusiasmado com o jogo de antíteses, levando-o a transfigurar a realidade, para que pudéssemos vê-la melhor. É este olhar crítico sobre o sertão, que abre o primeiro espaço para o regionalismo social do modernismo.
Ainda que transfiguração da realidade não seja, necessariamente, ficção, ficção é transfiguração da realidade. Seja Graciliano Ramos, com Vidas secas, seja João Guimarães Rosa, com Grande sertão: veredas. Em ambos os textos, há transfiguração da realidade regional. Ambos são críticos, criando ficção da melhor qualidade. Não podemos, sequer, estabelecer uma hierarquia entre eles. A economia verbal, quase mudez de Fabiano, devido à situação degradante por que o personagem passa, não fica devendo nada, à loquacidade de Riobaldo Tatarana, cujo discurso só confunde quem leu Grande sertão: veredas, sem o cuidado que o texto merece, e vê-se enredado pela extensão do seu solilóquio. E que beleza essa transfiguração que ocorre nos dois escritores! De um lado, um ser humano se reduz a vivente, uma cachorrinha pensa, alçada à condição humana; do outro lado, um jagunço fala e demonstra um conhecimento do mundo admirável, encantando um doutor de diploma, vindo da cidade, que cala, e as poucas intervenções que faz, todas subentendidas, dão ainda mais munição – sem trocadilho – à fala desenvolta do jagunço.
Para quem desempenha a função de leitor crítico, seja professor de literatura ou não, a releitura de determinadas obras se faz necessária. Reler não é só melhor do que ler, quando o texto vive a nos chamar. Reler, reler, sempre reler é o único meio de que dispomos para nos libertar das amarras da razão que se funda na autoridade. A maior autoridade que existe é o texto literário e as interpretações que dele provêm e que, por esta razão, podem ser comprovadas pelo próprio texto.
A releitura nos transfigura para entrar, cada vez mais, no mundo da ficção.