Nas minhas aulas de literatura, costumo repetir, à maneira de um mantra, duas frases, que me parecem essenciais para quem quer lidar com o fenômeno literário na condição de leitor crítico ou de professor de literatura:
“Por melhor que seja a análise feita de uma obra literária, ela não substitui a sua leitura.”
“Não cedam à razão da autoridade, mas à autoridade da razão."
A primeira frase é para aqueles que esquecem que a leitura cuidadosa do texto literário é incontornável. E como texto ficcional, por definição transfigurador da realidade, deve ser lido várias vezes, se queremos ter um certo domínio sobre o que ele diz e o que ele esconde. Digo certo domínio, porque uma das características da ficção é o seu afastamento da realidade, por mais que possa, aparentemente, parecer com ela; outra característica é a sua recusa a ser totalmente apreendido. O texto que se faz apreender na sua totalidade está morto.
Ivan Shishkin
“O naturalismo foi uma bisbilhotice de trapeiros. Ver bem não é ver tudo: é ver o que os outros não veem.”
O olhar do professor, do crítico, do analista ou do leitor fruidor é sempre menor do que o olhar do ficcionista. E quando o ficcionista se decide a fazer uma obra de denúncia explícita, se a sua poíesis (ποίησις) – o ato criador, em essência – não for maior do que o seu engajamento, o seu olhar se apequena. É o que acontece com Aluísio Azevedo, que se amesquinha sob as imposições doutrinárias do Naturalismo, em O homem, mas se agiganta, quando vai além, em O Cortiço. Não só ele antecipa, nas transformações da antiga estalagem em avenida, as reformas de Pereira Passos, no início do século XX, no Rio de Janeiro, mas também ele dá o salto, criando, na figura do antigo vendeiro João Romão, o Visconde, que ascende pela exploração da mão-de-obra e do acúmulo de capital, realizando um romance moderno avant la lettre, ainda que a obtusidade de alguns o queira naturalista.
Ivan Shishkin
Melhor do que ninguém, Euclides da Cunha sabia o que estava fazendo. Por isto mesmo, não se contentou em uma descrição morta e insossa para nos dizer o que era o sertão nordestino e, mais especificamente, o da Bahia. Aviventou-o, tornou-o dinâmico, fê-lo ressoar, na descrição brilhante da
Ivan Shishkin
Ainda que transfiguração da realidade não seja, necessariamente, ficção, ficção é transfiguração da realidade. Seja Graciliano Ramos, com Vidas secas, seja João Guimarães Rosa, com Grande sertão: veredas. Em ambos os textos, há transfiguração da realidade regional. Ambos são críticos, criando ficção da melhor qualidade.
Ivan Shishkin
Para quem desempenha a função de leitor crítico, seja professor de literatura ou não, a releitura de determinadas obras se faz necessária. Reler não é só melhor do que ler, quando o texto vive a nos chamar. Reler, reler, sempre reler é o único meio de que dispomos para nos libertar das amarras da razão que se funda na autoridade. A maior autoridade que existe é o texto literário e as interpretações que dele provêm e que, por esta razão, podem ser comprovadas pelo próprio texto.
A releitura nos transfigura para entrar, cada vez mais, no mundo da ficção.