A vida muda rápido. A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida como você conhece termina.
Ontem, em meio a uma tarde fria e nublada pelas cenas de uma guerra insana, lembrei das frases com que Joan Didion inicia o romance “O Ano do Pensamento Mágico”, no qual a escritora narra a morte do marido, John Gregory Dunne, e a doença fatal da única filha.
Ontem, em meio a uma tarde fria e nublada pelas cenas de uma guerra insana, lembrei das frases com que Joan Didion inicia o romance “O Ano do Pensamento Mágico”, no qual a escritora narra a morte do marido, John Gregory Dunne, e a doença fatal da única filha.
São sentenças que fazem estremecer, por sua carga de verdade implacável. Num desses instantes banais, em que se está preparando uma salada para o jantar, o mundo conhecido se desvanece. A existência, fragilíssima e delicada, evapora.
Pode acontecer na volta do trabalho, ao se ouvir no rádio do carro que um governante vizinho decidiu destruir o parque de diversões, o prédio, a igrejinha do bairro e o cinema da sua infância. No dia seguinte já não haverá a busca pela nova babá, a padaria na esquina ou a cerveja com os amigos. Já não existirá trabalho, brinquedos espalhados pela casa ou a decisão de comer pipoca assistindo séries de TV. Poderá não haver o seu país. A vida como você conhecia desapareceu. Num piscar de olhos.
E o que fazer quando o tempo, a doença, o imprevisto ou a guerra baterem à porta, exigindo seu tributo?
Qualquer adulto sabe: a dor e a perda fazem parte do jogo iniciado antes de chegarmos. Portanto, a resposta é a de Guimarães Rosa: a vida exige coragem.
Coragem. Sete letras. Não significa que vai tornar o mundo um lugar melhor. Vai fazer a diferença apenas para você – e é o suficiente. Sete letras para encarar a vida sem medo, sem ilusões.
Coragem para tomar posição quando um ato vil se desenrolar diante de você. Nada é pequeno demais que dispense a firmeza na tomada de posição. Um homem injustiçado ou um país invadido merecem igualmente solidariedade, respeito, apoio. Requer coragem não se vender às conveniências, não fechar os olhos ao sofrimento alheio, não arrumar desculpas para os que usam o seu poder para esmagar os outros – seja micro ou macro poder.
Acredite-me: seu café terá gosto azedo todas as vezes que você se acovardar.
Estar vivo é um desafio, mas também oportunidade, gema rara. Neste imenso planeta, decorado por belezas e recheado de surpresas, ainda respiramos.
Assim, apanhe a vida com as duas mãos, como uma fruta madura. Sinta o seu aroma, morda-a gentilmente, sentindo o sumo escorrer entre as gengivas, tocando a língua, enchendo a boca de sabor. Desfrute do instante presente. Ele é fugaz.
Não viva apenas para cumprir tabela, para suportar os dias entre queixas e ressentimentos. Aprecie a caminhada, sabendo por antecipação que a estrada é acidentada. Prepare-se para ela. Veja a multiplicidade de cenários e momentos. Guarde cada imagem nas retinas – cansadas ou não. É o seu patrimônio.
Cumpra o seu dever em vez do alheio. Faça as suas tarefas com paixão avassaladora. Não para ser aplaudido, elogiado, bajulado. Faça-as por você, para seu prazer ou realização – enquanto pode.
Ame muito, todos os dias, mas sabendo que nem sempre é recíproco; que ingratidão existe, que a impermanência é a marca das horas. Qualquer um pode partir, a qualquer instante. Por mil razões. Revista-se de coragem para vê-los ir sem se deixar destruir.
Acrescente algum risco ao cotidiano. Pode custar feridas emocionais ou ossos quebrados (ambos são curáveis; abrace o aprendizado), mas pode ser um treinamento para a hora mais amarga: a de defender seu cantinho no mundo, despedir-se dos seus filhos, dar adeus ao seu modo de vida.
As incertezas da existência vão lhe demandar sacrifícios pessoais por um bem ou valor maior. Alguns vão moer seu corpo e lhe restará um espírito inquebrantável.
Pegue essa sua alma tão grande e aproveite a vida aqui e agora. Faça uma festa particular, com os seus talentos mínimos ou grandiosos, no seu cotidiano prosaico. Seus bordados, pinturas, escritos, desenhos, cantigas, comidas cheirosas, seu jardinzinho magro, sua dança desengonçada, seu café num bule simples. Dia virá em que tudo isso será memória, terá voltado ao pó. Haverá apenas silêncio.
Antes que tal aconteça, beba duas taças de coragem e aproveite o seu dia. Beba-as até o fim e estale a língua antes de dormir.