Meu amigo Chico Viana escreveu, semana passada, sobre as máscaras da pandemia , essas que temos usado nos últimos dois anos, de todas as c...

As outras máscaras que não as da pandemia

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Meu amigo Chico Viana escreveu, semana passada, sobre as máscaras da pandemia, essas que temos usado nos últimos dois anos, de todas as cores, formatos e preços. Escreveu, como sempre, com toda a graça de escritor consumado que é, e com a propriedade de intelectual atuante, que é também. Li seu texto, gostei e fiquei pensando sobre outras máscaras que não as da pandemia, aquelas que usamos, todos nós, a vida inteira, nas relações interpessoais cotidianas, e que quase sempre não são vistas pelos outros (muitas vezes nem por nós próprios) mas por todos pressentidas, intuídas, sabidas. É dessas que quero tratar agora, esperando que Chico delas se ocupe mais à frente, melhor que eu, naturalmente.

Denise Wauters
Quantas máscaras usamos durante a nossa vida? Direi melhor: quantas máscaras diferentes usamos num único dia de nossa existência? Várias, muitas, muitíssimas, não tenho dúvida. E não estou a dizer nenhuma novidade, claro, pois todo mundo sabe disso desde sempre ou, pelo menos, desde o primeiro impacto causado por algum ou alguma desmascarado(a). No mundo do teatro, sabe-se, dominam apenas duas máscaras emblemáticas: a da tragédia e a da comédia, uma triste, outra risonha, ambas resumindo as humanas emoções e os humanos sentimentos. Mas na chamada vida real, da qual a do teatro pretende ser uma representação, quantas máscaras são necessárias para dar conta dos papéis que somos obrigados a desempenhar nas mais diversas situações de nosso inconstante dia a dia?

De manhã, ao acordarmos, colocamos a primeira máscara, seja ela qual for, de acordo com nosso humor; depois, no trabalho, a trocamos por outra (ou outras), de acordo com os interesses e necessidades; finalmente, à noite, nos compromissos sociais, substituímos as anteriores, de acordo com as conveniências. É assim todos os dias, inclusive nos fins de semana e feriados, já que somos atores e atrizes em tempo integral.

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Ah, os compromissos sociais, que palco difícil, como exigem de nós o uso constante de máscaras diversas e o máximo de nosso talento teatral. Não, esclareça-se, que sejamos hipócritas profissionais, apesar de que esses existem, e como!, mas é que não é possível enfrentar a vida social e os seus personagens múltiplos sem nos adequarmos minimamente às situações e aos ambientes, sob pena de sermos alijados como intrusos indesejáveis. Não se submeter a isso, sabemos, significa condenar-se ao isolamento dos ermitões do deserto. Quem consegue?

E os políticos? Esses, cada vez mais, são os senhores das máscaras inumeráveis. Usam uma a cada minuto, sem a menor cerimônia, acostumados que estão a dizer não o que pensam e sim o que o público quer ouvir. Sobre cada assunto ou circunstância, uma máscara apropriada, todas com o perfil de bom moço, probo, servo do bem comum. Daria gosto de ouvi-los, não soubéssemos o quanto mentem.

Recentemente, revi o filme De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick. Quantas máscaras. A personagem principal, um exitoso e jovem médico nova-yorkino, introduz-se clandestinamente numa mansão dos arredores da cidade, onde realiza-se uma imensa e luxuosa orgia.
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São muitos participantes, homens e mulheres, todos de máscara, inclusive o audacioso penetra. O sexo rola solto e promíscuo, como seria de esperar. Não há inibições nem receios, claro, pois todos estão com o rosto coberto explicitamente, podendo, portanto, ser cada um e cada uma o que em verdade são, despidos cada qual de sua respectiva máscara invisível de todas as horas. O filme, evidente, trata de outros temas, mas, no momento, fiquemos só com o que nos serve aqui.

No carnaval também usamos máscaras para o mesmo fim. Ou seja, para podermos assumir plenamente nossa própria identidade, nosso “eu”, ocultando-nos. Usamos uma máscara para tirarmos outra. Ou seja, não ser para ser. Na pandemia, a situação é inversa. A máscara sanitária não nos exige a retirada da máscara invisível que carregamos todas as horas. É uma sobreposição de máscaras, sem nenhum problema para ninguém. A máscara invisível, como uma segunda pele, faz parte do nosso corpo; a máscara pandêmica, quem sabe, se continuarmos a usá-la indefinidamente, talvez assuma, aos poucos, a natureza translúcida da outra. Há muito tempo, conheci uma mulher cuja máscara invisível logo identifiquei. Ela gostava e provavelmente ainda gosta de posar de defensora dos oprimidos.
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Com isso, na verdade, ela atingia – e atinge - outros objetivos puramente pessoais, que nada tinham nem têm de altruístas. Essa era apenas uma de suas máscaras. Como todos nós, ela também usava outras, de acordo com as circunstâncias. Grande atriz, essa pessoa até que não se saiu mal no palco da vida. Que eu saiba, nunca foi desmascarada. Mas eu consegui ver com muita clareza os seus truques.

Outro caso que me vem à lembrança é o de um indivíduo de voz mansa, que fala constantemente em Deus, aparentando ser muito reto e muito simples. Parece um santinho. Mas na verdade é o contrário disso: não é reto e adora as pompas e grandezas deste mundo. Não sei se consegue enganar os outros; a mim, há muito que não engana mais. Nem a Deus, claro. As máscaras invisíveis têm esse problema: não raro, de tão óbvias, facilmente se mostram.

Estranho bicho é o homem, que precisa de máscaras para viver e sobreviver. Dos outros animais, que me lembre, apenas o urso panda usa máscara. Mas não sabe disso. Ele é o que é, simplesmente, em todos os momentos. Imagino que deva ser mais feliz que os sapiens.


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