Para Silvana Romani, que perdeu Sinhá
O atento leitor e a cautelosa leitora já devem estar se perguntando: Quem será esse déspota que está sendo chamado de adorável? Existiria alguém, algum ditador, que poderia ser agraciado com tão mimoso adjetivo?
Poderia, não! Pode! Vou contar quem é. O nome dele é Fred. Fred do quê? De onde? Irão me perguntar. Vou ter que contar. Fred é para mim apenas Fred, um cão que compartilha o mesmo endereço que eu. Assim, já está respondido, o “do quê” e o “de onde”. Vamos então, às demais considerações.
Tem dois anos de idade, o que no calendário canino equivaleria a uns quinze comparados com nós humanos, nem muito menos, nem muito mais. Enfim, um adolescente com todo vigor e efervescência hormonal próprios da idade. É um “labrador retriever”. Segundo os especialistas, seus antepassados são originários do Canadá, lá da província de Terra Nova e Labrador. Isso mesmo, são dois nomes para uma única das dez províncias (e não estados) daquele país da Polícia Montada. Ainda segundo os peritos, trata-se de uma raça versátil, amigável, sem nenhum traço de agressividade ou timidez, de excelente faro, capaz de se adaptar a qualquer lugar, companheiro fiel, inteligente, vivaz e obediente. Como originalmente era um cão de trabalho que ia nadando buscar as aves abatidas pelos caçadores, esse cão adora água e é muito cuidadoso com a caça encarregado de recolher, por isso uns até chamam-no de “boca macia”. Não é um cão apropriado para guarda.
Dito isto, vamos nestas mal traçadas linhas, tecer algumas ponderações acerca do caráter desta soberana figura que me motivou escrever o presente texto.
Pressupostamente deveria ser o cão de minha filha, a caçula, mas esta, meses atrás bateu asas e foi ganhar o mundo deixando o ninho vazio e meu coração em frangalhos... e o Fred. No entanto, desde que chegou (obviamente refiro-me ao cão e não à filha) essa criatura me adotou. Deveria então, ser eu o mandão, o alfa, mas não é o que vem ocorrendo. Não me desgruda, está sempre ao meu lado, mas ele se acha. Sou o subalterno e ele o chefe.
Sofás, cadeiras, roupas no varal é com ele mesmo, parece um Átila de quatro patas. Gosta de demarcar seu território. A salsinha que estava num vazo, amarelou. Por que? Foi o Fred quem fez xixi ali. E o manjericão? A cebolinha? O alecrim? A alfavaca? O coentro? Nada progride, nada vinga porque ele levanta uma das patas traseiras e derrama nos meus temperos o liquido assassino. É bravo, o danado, característica incomum na raça, que o digam carteiros e o pessoal do “delivery” que chegam ao meu portão. As samambaias do jardim ele arranca com raiz e mais tudo o que tem direito para exibir o produto de suas traquinagens bem aos meus pés.
Minhas caminhadas com ele são diárias. Percorro 2,5 km em meia hora. Ele acha que aquilo não é um passeio, mas a hora de fazer suas necessidades. Durante o trajeto, pelo menos três vezes tenho que exercer minha cidadania e recolher o produto mal cheiroso que ele deixa pelo caminho. Lá fico eu levando saquinhos de supermercado e os abasteço de um produto que delicadamente podemos chamar de cocô. Eu, na idade que cheguei, me submetendo a essas tarefas pouco dignificantes...
Um veterinário, amigo meu, recomendou-me a castração (não minha, mas de Fred). Segundo esse médico de bicho, o meu amigão iria perder essa mania de marcar território, seria menos intolerante com outros cães, deixaria em paz as visitas, não morderia a mão do funcionário da Energisa e deixaria em paz meus sofás e as roupas no varal. O que vocês acham? Não concordo.
Fui um menino buliçoso, traquinas. Quebrei vidraças, apertei campainha nas casas e saí correndo, briguei com outros meninos, tirei notas baixas, menti para meus pais, fiz coisas escondidas no banheiro pensando nas professoras e outras coisas próprias da idade e algumas não tão próprias. Agora imagino se o pediatra de plantão recomendasse a minha castração. Já pensaram?
Fique tranquilo, Fred. Jamais farei isso com você. Fora essas suas idiossincrasias, você é meu parceiro. Quando escrevo, como agora, você está aos meus pés e me olha com toda ternura do mundo. Quero sempre ver você vindo me despertar pelas manhãs inaugurando os meus dias com sua alegria contagiante. Irei, como sempre, perdoar sua tirania e direi para quem interessar possa: Você é o pior cão que já tive e ao mesmo tempo, o melhor de todos.