Instigante, o mais recente livro de Hélder Moura, O princípio da diversidade e outros anarquismos: textos pandemônicos (João Pessoa, Ideia, 2021). Lançando mão de um recurso habitual na literatura – o autor que se faz editor – e estando na boa companhia de Tomás Antônio Gonzaga, José de Alencar e Aluísio Azevedo, Hélder diz ter recebido os manuscritos de um falecido amigo de longas datas, de nome Bakunin, tornado “Bacurim”, pela zombaria outrora natural de crianças e adolescentes, uns com os outros; amigo anarquista por excelência,
cujos escritos ele se propôs colocar na forma impressa.
É irrelevante, do ponto de vista da criação literária ou ensaística, saber se o discurso é de Hélder Moura ou de Bakunin/Bacurim. Ainda que seis dos sete textos apresentem um viés ensaístico e o último seja uma pretensa entrevista do amigo aos alunos do curso de Filosofia, a estratégia de editoração lhes concede uma pitada de criação literária e, portanto, o benefício da dúvida, não sobre o seu autor, mas sobre a sua autoria. O autor é sempre um; a autoria, sempre de vários. Hélder mostra-se atento a esse princípio da diversidade, na citação de vários pensadores – Platão, Aristóteles, Freud, Darwin, Lacan, Jung, Rousseau, Thoreau, Canetti, Eco, Barthes... – e dos textos religiosos, promovendo, com a variedade de concepções um certo anarquismo, que se insurge às convenções sociais, políticas, religiosas e literárias.
O relevante mesmo é perceber que a discussão gira em torno das angústias, inquietações e aflições do homem, no intuito de descobrir o porquê nos encontramos no mundo, qual a função de saber pensar e se expressar, de modo cada vez mais complexo, partindo dos gestos para os sons até chegar à escrita. Qual o papel que a evolução nos reservou como espécie única selecionada para a complexidade do pensamento, que atinge suas realizações máximas com a filosofia e com a literatura? Por que, sendo esta capacidade única que nos une, ainda não conseguimos nos irmanar e nos proporcionar um bem-estar, a despeito de toda a abundância que a natureza pode nos conceder e daquela que podemos criar? São questões milenares que a filosofia, a ciência, a psicanálise, a política e a religião tentam, mas com respostas sempre insuficientes.
É diante de tais indagações que Hélder/Bakunin/Bacurim discorre sobre os regimes de governo e a religião institucionalizada, sem dogmatismo e com um estilo agradável ao leitor, mais próximo da conversa do que da sensaboria dos compêndios, flexibilidade que só o ensaio pode nos dar. Nessa conversa, nunca fiada, em que ele exalta a democracia e o seu ponto extremo, que seria o anarquismo, podemos constatar o lastro de um saber que uma rápida vista d’olhos na bibliografia só confirma. É conversa, sim, mas não sem o estofo necessário para dar-lhe consistência.
Ratifico, portanto, o que disse no início: o livro é instigante e suscita muitos desdobramentos. Gostaria, no entanto, para entrar na conversa, de me ater apenas à República, de Platão, livro que considero como o mais importante jamais escrito na história da humanidade, ponto de partida obrigatório para a discussão e o debate sobre a Política, com P maiúsculo. É claro que Platão pensa numa cidade-estado para a sua época (final do século V, metade do século IV a. C.), pois não poderia ser diferente. O que ele idealiza é, contudo, para aquele momento, um grande avanço. Hoje, poderíamos ver como um ponto de partida, para o reparo de nossas combalidas e enfraquecidas democracias, pois, em algum momento da nossa história, desvirtuou-se o seu sentido e a democracia passou a ser concebida como uma sociedade mole, fraca, anêmica, quando, na realidade, ela necessita da consciência de todos, com relação aos seus deveres, mais do que com os seus direitos, para poder se erigir e permanecer de pé.
Platão/Sócrates pensa numa politeia (πολιτεία) que promova o bem-estar de todos. A princípio, pequena e estruturada no respeito mútuo entre os seus cidadãos, no trabalho realizado por quem conhece bem as funções que desempenha; no controle da natalidade, e no comedimento dos prazeres. Glauco, um dos seus interlocutores, acha que assim se criaria um estado de porcos (372d), Platão/Sócrates retruca dizendo ser um estado sadio (372e). A ampliação do estado passa, então, pela ampliação das responsabilidades de cada um, pois, como admitiria o próprio Glauco, “as coisas belas são difíceis” (χαλεπὰ τὰ καλά, 435c).
A fundamentação dessa cidade-estado ou politeia se encontra em três alegorias, semeadas ao longo da República, como se não tivessem qualquer relação entre si. O aparente semear disperso de Platão é proposital, pois nos obriga a pensar e a estabelecer o elo entre essas alegorias, cuja essência é a responsabilidade de cada um: uma sociedade que só age dentro da justiça ou só faz o bem, porque existe uma lei que pune as ações contrárias, está fadada a ser uma sociedade fraca e corrupta, afinal de contas, o desregramento da alma, para quem a Justiça é o maior bem, tem como consequência o desregramento do corpo, suscitando tribunais e clínicas. A falta de uma Justiça pessoal é situação grave, ocasionada pela falta de educação, a apaideusia (ἀπαιδευσία), vocábulo que, não sem razão, também traduz a estupidez (404e-405b). É aí que entram as alegorias do Anel de Giges, da Caverna e de Er.
Com a alegoria do Anel de Giges (359b-360d), aprendemos que fazer o certo independe de leis e que devemos fazê-lo estando sob os holofotes ou na intimidade reclusa de nosso quarto ou, ainda, resguardados pela invisibilidade. A alegoria da Caverna (514a-519c) leva-nos a entender que o conhecimento, promovido pela educação, fundamento da sociedade para Platão, é a maior das responsabilidades – a quem sabe mais, mais será cobrado. Sair da escuridão e subir a íngreme escarpa, em busca da luz, para conhecer a verdade, pode cegar-nos momentaneamente, mas irá abrir os nossos olhos e a nossa percepção interior para o conhecimento libertador. Isto, porém, não é suficiente. Temos a responsabilidade de voltar à escuridão da caverna, com o risco da nossa própria vida, com o intuito de levar a luz aos que por lá permanecem, por ser, talvez, mais conveniente, afinal o conhecimento exige o esforço da subida íngreme e dificultosa; do cegamento pela luz que nos abrirá outros olhos, o do raciocínio e da reflexão sobre o papel que representamos no mundo.
Já a alegoria de Er (614a-621e) é a revelação máxima de que precisamos mergulhar na nossa própria obscuridade, para daí podermos encontrar a luz da responsabilidade. Todas as nossas ações são escolhas que não devem ser imputadas aos deuses ou aos nossos semelhantes, senão a nós mesmos. É a penosa subida até a luz, recusando as sombras convenientes ou a invisibilidade sedutora, que nos fará renascer através do conhecimento, descobrindo que os sistemas de governo são todos falhos, que nenhum poderá nos garantir a Justiça e a eudaimonia (εὐδαιμονία), essa felicidade interior que nos invade e que transborda, quando fazemos o bem pelo amor ao Bem, quando praticamos a justiça pelo amor à Justiça.
O anarquismo, tão bem defendido por Hélder/Bakunin/Bacurim, estaria inserido, portanto, nessa compreensão de que todos temos responsabilidades enormes, conosco próprios e com os outros. Sem essa assimilação nada funcionará e o anarquismo passará de estado sem governo a estado desgovernado. Não há Justiça fora de mim, antes de havê-la dentro de mim, por uma prática constante e diária, o que Platão chama de dikaiosune (δικαιοςύνη). Em suma, para que possamos chegar à condição de um estado sem necessidade de governo, precisamos, antes de tudo, nos governar, ou em lugar de uma civilização que nos proporcionará o bem comum, teremos uma civilização que, mais e mais, nos provocará mal-estar.
Hélder põe novamente na mesa, de uma forma agradável de ler, mas provocativa, essa discussão, que, possivelmente passará despercebida, por estarmos viciados na transferência de responsabilidades e na procura da Justiça onde ela jamais será encontrada. O resultado disso é o que vivenciamos diuturnamente: a punição mais grave, diz Platão/Sócrates, é a de sermos governado por alguém muito pior do que nós, quando nos recusamos a nos governar a nós mesmos (347c).