De um vaso coríntio, do século VI a.C. (~560), que, segundo informação de Timothy Gantz (Mythes de la Grèce archaïque, Paris, ed. Belin, 2004, p. 266), encontra-se em Boston, nos vem a imagem de Odisseus atado ao mastro de seu navio, com uma sereia voando ao redor dele, outras duas apoiadas em duas rochas, enquanto seus marinheiros continuam remando. Há um nítido contraste entre a atitude de Odisseus, olhando para cima, e a impassibilidade dos remadores ou a instrução do timoneiro, que, inquestionavelmente, lhes diz de continuar remando, conforme se sabe pela narrativa do poema homérico.
Sabemos que o mito de Odisseus e das sereias se encontra, pela primeira vez, na Odisseia, no Canto XII, seja nas recomendações que Circe faz ao herói, para delas escapar (versos 39-46), seja no momento da ação, em si, quando Odisseus se aproxima da ilha destes seres (versos 165-200). O que esta obra de Homero não nos fornece é uma descrição que possa definir as sereias. A narrativa, concentrando a ação no seu canto sedutor, diz apenas que elas se encontram sentadas na ilha, arrodeadas de ossadas humanas. Como filhas de Terpsícore, uma das Musas, conforme nos ensina Apolônio de Rhodes (Argonáutica, versos 895-896), o canto das sereias, de onde a expressão que se tornou popular, se contrapõe ao fato terrível de que elas são devoradoras de marinheiros incautos, seduzidos pelo seu canto mavioso, pois, como a mãe e as tias, elas conhecem “tudo o quanto na ampla Troia/Argivos e Troianos sofreram pelo desejo dos deuses” (Odisseia, Canto XII, versos 189-90), expressando-as através de um canto sedutor, que chama Odisseus em direção a elas, com os epítetos de “célebre Odisseus, grande glória dos Aqueus” (πολύαιν᾿ Ὀδυσεῦ, μέγα κὐδος Ἀχαιῶν, verso 184).
A referência à forma das sereias, como virgens semelhantes a pássaros (οἰωνοῖσιν, παρθενικῇς), seres híbridos, portanto, nos é dada pelo último dos grandes poemas épicos gregos, a Argonáutica, de Apolônio de Rhodes (Livro IV, versos 896-899), datado de cerca 275 a.C. É com Apolônio que se cristaliza essa imagem das sereias voadoras, mais ainda do que a da cerâmica do século VI. Claro, o texto se difunde rapidamente, multiplicando-se em edições várias, enquanto o vaso é único.
O que nos intriga é o fato de que a difusão das sereias como jovens aladas é anterior ao poema de Apolônio de Rhodes e posterior ou contemporânea à permanência da Odisseia como texto, o que se dá a partir de século VI a.C. A minha teoria é que, em uma das versões orais desse poema homérico, poderia ter havido uma referência à forma das sereias como virgens-pássaro, que, por um motivo que foge à nossa compreensão, foi suprimida da edição encomendada por Pisístratos, chamada de vulgata homérica, no século VI a.C., e a partir daí, o texto omitiu essa característica possivelmente presente na oralidade. Desde uma primeira fixação do texto pelos filósofos e filólogos da Biblioteca de Alexandria, em meados do século III a.C., de que Apolônio foi o segundo bibliotecário, o texto considerado canônico é o que, digamos assim, temos em nossas mãos.
O épico de Apolônio de Rhodes – ouso uma outra teoria –, parece resgatar mais a tradição que se encontra na oralidade, do que o famoso e já referido vaso coríntio. É possível que o poeta, diante da distância a separar Corinto, no istmo grego, e Alexandria, no norte do Egito, não tenha tido qualquer contato com o vaso ou não tenha sabido da sua existência. Fica a questão a ser resolvida pela arqueologia ou pelos estudiosos da cerâmica grega.
Algo mais importante a se discutir, neste momento, é o termo “sereia”. Na nossa mente ocidental, permanece o simbolismo da sereia como um ser híbrido, sendo metade mulher, metade peixe. Não nos ocorre de onde veio essa forma. O termo “sereia”, no entanto, deriva do grego Σειρήν, Σειρῆνος, entrando na língua portuguesa através do latim “Sīrēn”, “Sīrēnis”, cujo acusativo “Sirena”, assume uma forma grega. É desse acusativo grego que provém o vocábulo da primeira declinação “sirena”, “sirenae”, do latim vulgar, a partir do século III de nossa era, apresentando, por sua vez, “sirenam” como forma de acusativo.
Sabemos que o acusativo é o chamado caso lexicogênico, gerando, na língua portuguesa, as palavras provenientes do latim. Seja que a palavra nos tenha chegado pelo latim culto, através do acusativo grego “sirena”; seja pelo latim vulgar, com o acusativo “sirenam”, é muito fácil explicar a forma “sereia”, que se adotou na língua portuguesa:
Sirena > serena > serẽa > serea > sereia
Latim culto, acusativo grego
Sirenam > sirena > serena > serẽa > serea > sereiaLatim vulgar, acusativo latino
Há, nos estudos clássicos, toda uma questão bizantina que quer fazer, nas traduções, a distinção entre “sereia” e “sirena”. A tradição adotou “sereia”, os mais modernos, querendo ser diferentes e estando no seu direito, adotaram “sirena”, o que não significa que estejam certos e a tradição errada. Tudo é uma questão de escolha tradutória que se ajusta ao texto, sem prejuízo de seu entendimento, caso se opte por “sereia” ou por “sirena”. Acredito mesmo que o entendimento se torna mais claro com o termo “sereia”, por estar impregnado na nossa memória. “Sirena” ou “sirene”, além de para nós estar associado ao significado do instrumento utilizado para dar alarmes, em nada parecido como o som mavioso do canto das sereias, parece-nos um preciosismo, ainda que não seja proibido ou indevido utilizá-lo.
Quanto ao termo “sereia”, para designar um ser meio mulher, meio peixe, deve ter sido contaminado pelo fato de elas habitarem uma ilha no Mar Mediterrâneo. Por outro lado, há, possivelmente, uma contaminação com os tritões e com os cavalos de Posídon, todos animais marinhos, cujas partes abaixo da cintura eram de peixe.
Seja como for, cabe ao tradutor escolher a forma que lhe parece mais adequada, negociando a sua utilização, a partir da compreensão da estrutura e do conteúdo do texto que traduz. Ao leitor, cabe-lhe ajustar este ser ao que a tradição jogou no seu imaginário. É o caminho em que tradição e tradução se imbricam, concedendo a quem frui um texto fazer dele a melhor imagem possível.