O Pintor do Império
Intensa biografia - em substancioso trecho da História do Brasil - cheia de casos curiosos e vívidas historietas, é o que temos em PEDRO AMÉRICO – As Cores do Brasil Imperial, de Lúcio Flávio Vasconcelos – ed. Prismas 2016.
Sem deixar de venerar um minuto sequer seu famosíssimo conterrâneo, o autor jamais nos escamoteia um defeito, sequer, do biografado, o que torna o relato muito e muito convincente.
Sem deixar de venerar um minuto sequer seu famosíssimo conterrâneo, o autor jamais nos escamoteia um defeito, sequer, do biografado, o que torna o relato muito e muito convincente.
Fascina de cara: aos nove anos, Pedro desenha uma cadeira e uma espingarda ante o cientista francês Jacques Brunet, pra convencê-lo a incluí-lo em sua expedição pelo interior do sertão, o que lhe rende o trabalho extremamente precoce que acabou por torná-lo um artista apaixonado pela ciência, como por tudo mais.
Aos onze anos o vemos – como diz Lúcio Flávio, “baixo, magro, moreno, olhos negros e dotado de uma desmedida ambição artística- frente a frente com seu homônimo, o imperador D. Pedro II - 29 anos, “alto, louro, olhos azuis, barba fechada”.
Não consigo evitar: o Imperador, ao longo da obra, acaba me agradando mais do que seu protegido sempre em busca de vantagens e, no final de contas, nada grato, muito menos fiel. D. Pedro me comove, porque - tanto quanto Lourenço de Médici ao perceber e apoiar o menino Michelangelo - consente na vinda, lá da Paraíba, do garoto pobre que lhe pede meios pra estudar às custas do Tesouro na Academia Imperial de Artes. Isso inclui passagem, antes, pelo Colégio Pedro II, onde eram formados “os membros da elite para as atividades de liderança no país”. Veja isto, lá pelas tantas: “Desde julho de 1858, Pedro Américo estava enfermo. (...) Mal se levantava da cama, recolhido ao pequeno quarto que ocupava nas dependências do Colégio”. E este detalhe é soberbo:
“D. Pedro o visitou no próprio quarto”.
Pela unha se conhece o leão: vê-se logo que toda a biografia de Lúcio Flávio Vasconcelos – graduado em História pela UFPB, com mestrado e doutorado pela USP – é muitíssimo ampla. Arma cenários que explicam toda a trajetória de Pedro Américo. Depois de Areia, o Rio que o paraibano encontrou: 270 mil habitantes, 80 mil escravos, “um cheiro nauseabundo de pestilência”. Lúcio Flávio fala do sucesso do adolescente, do jovem no estudo acadêmico, da bolsa que ganhou do Imperador aos 16 anos pra estudar em Paris, quando, “após terrível viagem de 37 dias, (...) chegou ao porto do Havre”.
A biografia fala da França que ele vai encontrar, recém-saída de mudanças radicais, depois que, “em julho de 1848, os trabalhadores se uniram aos setores burgueses radicais e derrubaram o rei Luís Felipe”, instaurando II República, que não duraria muito:
“Em 2 de dezembro de 1851, o presidente Luis Napoleão Bonaparte deu um golpe de estado e assumiu o poder de maneira ditatorial”.
“No inverno de 1860, Pedro Américo começou a frequentar os cursos na École des Beaux Arts”. Nem sempre se deu bem, ali, mas em 1862 se submeteu mais uma vez ao exigente Concours de Places de verão e, “dessa vez seu desempenho foi excelente”.
“No período escolar seguinte, (...) ficou em 38º lugar”.
Por que?
“Passei com excelentes notas nos exames do Bacharelado em Ciências Físicas e Naturais, na Academia de Paris”.
Seguem-se idas e vindas ao Brasil.
“Com 22 anos incompletos, Pedro Américo estava de volta a Paris”.
Sem proventos, trabalha pro exército imperial francês na Argélia. Nada ético, pois “sem dúvida seus desenhos ajudaram a minar a resistência do povo argelino e a consolidar o domínio colonial francês na região”.
Sossegou?
Não.
“No dia 1º de março de 1867, começou a cursar o Doutorado na Universidade de Bruxelas. Frequentou aulas de mineralogia, psicologia e zoologia”. Vivendo de que? De vendas de telas avulsas “e caricaturas nos cafés do centro boêmio da cidade”. Foi assim que o nosso artista plástico se tornou o primeiro de sua geração a se doutorar numa universidade europeia. Trabalhos acadêmicos?
De Biologia: “Memória sobre a conjugação do spirogyra quinina”.
Física: “Hipótese relativa à luz zodiacal”.
“No dia 16 de janeiro de 1869, o Diário Oficial da Bélgica trouxe a nomeação de Pedro Américo para o cargo de professor adjunto da Universidade de Bruxelas”.
Satisfeito?
Não: volta ao Rio, casado, pra continuar a lecionar na Academia.
Percorri o Paraguai no final dos anos 70 e vi o quanto los Hermanos têm ódio de nós. A História Paraguaia conta que os bancos ingleses, não conseguindo ter Solano López entre suas vítimas – pois o país não lhes devia uma libra sequer, nem tinha nenhum analfabeto – mobilizou o Brasil, Argentina e Uruguai contra o vizinho. Lúcio Flávio Vasconcelos nos dá o nosso lado da História:
“A partir de dezembro de 1864, Solano Lopez, presidente do Paraguai, temendo que a aliança entre Uruguai e Brasil significasse uma ameaça à soberania do seu país, invadiu a província do Mato Grosso. (...) No dia 13 de abril de 1865, mandou ocupar a província argentina de Corrientes, abrindo outra frente de combate. Em junho, confiante na sua superioridade militar e adotando a estratégia de ofensiva, atacou a província do Rio Grande do Sul”.
Estive num lugarejo de nome Acosta Ñu – já em viagem a Buenos Aires - e vi um monumento com estátuas de bronze de garotos fardados. Aí a versão do nosso autor bate com a que ouvi por lá: “A última grande batalha no Paraguai foi a de Campo Grande, ocorrida no dia 16 de agosto”. Às oito e meia da manhã, seis mil soldados paraguaios, a maioria deles crianças entre 11 e 15 anos, comandados pelo general Bernardino Caballero, foram cercados por 20 mil soldados aliados. Atacados pela cavalaria, a tropa paraguaia ofereceu feroz resistência. Após oito horas de violentos combates, os aliados haviam vencido.
Essa batalha campal foi imortalizada por Pedro Américo no painel “Batalha de Campo Grande” e ajudou a alavancar sua carreira artística. Nele, o conde D´Eu ocupa o lugar central, em posição heroica. A versão paraguaia é bem diferente da de Pedro Américo. Como - naquele momento da guerra - a maior parte do exército paraguaio era composta por jovens e crianças sem experiência militar, o conflito entrou para a história como “Batalha de Los Niños”. De acordo com relatos dos sobreviventes e análises dos historiadores paraguaios, “as tropas aliadas realizaram um verdadeiro massacre contra os garotos que mal sabiam atirar, chegando a queimar a pequena paliçada em que se refugiaram do ataque dos aliados. Muitos deles morreram tragados pelas chamas. No Paraguai, o “Dia da Criança” é comemorado em 16 de agosto, em alusão ao conflito.”
Terrível.
Incluindo-se a iniciativa do nosso artista com esse quadro.
Como a princesa Isabel aceitou a ideia, mas não falou em grana, “Pedro Américo articulou para que seus amigos, através dos jornais, exaltassem o valor artístico e histórico da tela, com o intuito de “sensibilizar” a família Real para que pagasse por seu trabalho. Em pouco tempo o Governo Imperial se viu acuado. Vários jornais do país faziam apelos para que adquirisse a obra”. O mau-caratismo de Pedro Américo - segundo se lê em Lúcio Flávio - não fica nisso. “Seu interesse obedecia a um propósito político: diminuir o prestígio de Victor Meirelles, principal pintor do Império e monarquista convicto”.
Esse lado negativo do nosso artista se revelou com mais força bem mais tarde. “Só em 1889, com a deposição do seu protetor D. Pedro II, Pedro Américo assumiu seu republicanismo que, se existia, até então estava muito bem disfarçado”.
Mas não foi só isso.
Fim da escravatura? “Não consta nenhum artigo ou obra artística de sua autoria que demonstrasse envolvimento ou apreço pela causa emancipacionista”.
Mais meios pra subir?
“Decidiu fazer parte da maçonaria, encontrando assim uma entidade que o protegesse, ao mesmo tempo em que ampliava seu raio de contatos e capitalizava uma influente rede de amizades”.
A tela de Pedro Américo que mais me impressiona é a “Batalha do Avaí”. É uma cena de VistaVision da guerra do Paraguai. OK. Mas pra exaltar o que? “Com aproximadamente 19 mil homens, o exército brasileiro iria enfrentar uma força de 5 mil paraguaios. (...) No final jaziam no campo de batalha 297 soldados brasileiros e 3.600 deles”.
Isso me deixa... esmagado.
O livro de Lúcio Flávio Vasconcelos é tão monumental como o enorme painel.
Você se lembra dos protestos de 2013, chamados Manifestações dos 20 centavos, que chegaram a ser gigantescos e já sinalizaram para o fim do governo Dilma?
A História se repete.
“No dia 1º de janeiro de 1880, o Rio de Janeiro assistiu a uma revolta popular que abalou o poder imperial e desgastou a imagem de D. Pedro II. Milhares de pessoas se concentraram no Largo do Paço para exigir a revogação do aumento das passagens de bonde. (...) Aos brados de “fora o vintém”, os populares foram caminhando pelas ruas do centro”.
Black blocs?
“No percurso, esfaquearam jumentos e espancaram os condutores dos bondes. (...) Após a batalha campal que se seguiu, em que aproximadamente dez pessoas morreram, o ministro da fazenda Celso Figueiredo deixou o cargo e o preço da passagem permaneceu o mesmo”.
Já na Itália, sem conseguir emplacar seu nome como de deputado pela Paraíba, Pedro Américo mandou carta ao Imperador, onde “alegou doença crônica e solicitou sua aposentadoria da Academia Imperial de Belas Artes”.
“Aproveitou a oportunidade e pediu para ser nomeado Consul do Brasil na Itália. Após levantamento feito pela direção da Academia, porém, ficou constatado que, nos 16 anos em que Pedro Américo fora professor, lecionara apenas 4 anos e 4 meses. A resposta para seus pedidos foi o silêncio da burocracia imperial”.
Teve de voltar.
Insatisfeito no Rio - mais ainda quando lhe foi negada verba pra pintar o “Independência ou Morte” - nosso doente crônico soube que “o governo da província de São Paulo dera início à construção do Palácio do Ipiranga, em homenagem à Independência do país” e foi lá. Sem conseguir nada, mais uma vez mobilizou a imprensa, de tal modo que D. Pedro “determinou que o painel proposto por ele fosse pago com o dinheiro do erário público.(...) E o governo imperial adquiriu outros onze quadros dele por 28 contos”, com o que nosso personagem pediu nova licença e se mandou pra Europa.
Já se discutiu muito sobre a enorme semelhança do “Independência ou Morte” com o “Batalha de Friedland” , do pintor francês Jean-Louis Ernest Meissonier, Pedro I no lugar de Napoleão. O curioso é que, a propósito disso, Pedro Américo me lembrou o maestro José Alberto Kaplan e sua teoria da Intertextualidade. Diz Lúcio Flávio que Pedro Américo, a propósito, “escreveu um longo estudo – Discurso Sobre o Plágio na Literatura e na Arte – em que diz:
- O produto mais constante do espírito humano, longe de ser o invento , no sentido absoluto da palavra, é, ao contrário, o aperfeiçoamento do assunto, o desenvolvimento dos meios de expressão, a transformação mais ou menos profunda da ideia ou da forma inicial.”
Seja como for,
“no dia 8 de abril de 1888, a obra foi exposta em Florença”. O imperador e a Imperatriz estavam presentes, mais as rainhas da Sérvia, Inglaterra e Itália.
Ah, enquanto pintava, Pedro Américo também escrevia romances: “Holocausto”, Amor d´Esposo”, “O Foragido” e “Na Cidade Eterna”. Nenhum teve a repercussão de público e crítica de seus quadros.
Enquanto isso, no Brasil, surge uma Ku Klux Klan às avessas: “As fazendas que ainda possuíam escravos eram atacadas por grupos mascarados que libertavam os cativos”. E outro belo lance: O português José de Seixas Magalhães criou o quilombo do Leblon, no Rio. “Na chácara que possuía na região, abrigava os escravos foragidos e os empregava no cultivo de flores, que eram vendidas no centro da cidade. Entre essas flores se destacava a camélia”,
que virou símbolo dos abolicionistas.
Aí houve, numa ausência de Pedro II, a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel.
Com o intuito de proteger a Coroa, organizou-se a Guarda Negra, “formada por ex-escravos capoeiristas que idolatravam aquela que os libertou”.
Bem,
“os fazendeiros do Sudeste, que tinham entre 500 e 700 mil escravos, com a abolição sofreriam duro golpe”. Odiaram a monarquia. E, se “ em 1871 o Brasil devia 3 milhões de libras esterlinas, em 1889, 20 milhões”.
Gota d´água: o famoso Baile da Ilha do Fiscal, que custou 250 contos de réis, 10% do orçamento do Rio para o ano seguinte. “O jantar foi servido por volta da meia noite, em duas mesas em forma de ferradura, para quinhentos lugares. 800 kg de camarão, 1300 frangos, 500 perus, 64 faisões, 1200 latas de aspargo, 20 mil sanduíches, 14 mil sorvetes, 2900 pratos de doces, 10 mil litros de cerveja, 304 caixas de vinhos, champanhe e bebidas diversas. (...) A repercussão política do evento foi um desastre”.
Nosso amigo é terrível:
“No momento em que soube da queda da monarquia e implantação da República, Pedro Américo estava nos preparativos da tela alusiva à emancipação dos escravos. Imediatamente suspendeu a obra e pintou o quadro “Voltaire abençoa em nome de Deus e da Liberdade o Neto de Franklin(...), uma homenagem a Benjamin Franklin, um dos patriarcas da república norte-americana” Como se não bastasse, “em manifesto que data de 15 de fevereiro de 1890, enviado para ser publicado no Brasil, teceu críticas contundentes ao antigo regime e aderiu integralmente ao governo republicano”.
Foi eleito deputado em 15 de setembro de 1890, tendo sido “o segundo mais bem votado no seu estado natal, ficando atrás apenas de Epitácio Pessoa”. Mal experimentou a nova missão, largou tudo e voltou à Europa, mas num momento em que a pintura histórica “já era” e a fotografia eliminava radicalmente as encomendas de retratos a óleo.
Morreu em 1905, ano do ensaio geral da Revolução Russa, aos 61 anos.
RESUMO DA ÓPERA. “PEDRO AMÉRICO – As Cores do Brasil Imperial”, de Lúcio Flávio Vasconcelos merece – por sua ousadia, importância visível - uma segunda edição devidamente revisada... e ilustrada.