Самoвар и балалайка
A leitura dos clássicos russos da segunda metade século XIX e os mais recentes do século passado, como Boris Pasternak e Alexander Soljenítsin, aproximaram-me muito da cultura russa, de seus modos e costumes. Um povo ímpar, com um jeito muito particular de ser. Percebo-os como gente que tem a sensibilidade à flor da pele, com a arte no sangue e dessas e outras manifestações, a música, a dança e a literatura são fáceis de serem notadas. Citaria para início de conversa os compositores Prokofiev, Tchaikovsky, os balirinos Rudolf Nureyev, Mikhail Baryshnikov, a bailarina Natalia Makarova e o Ballet Bolshoi. Estão aí para dizerem que não minto. Isso sem falar nos escritores, que qualquer brasileiro que goste de literatura; ou leu, ou deles já ouviu dizer algures.
Essas minhas impressões ganharam força depois de conhecer a escritora Ludmila Sararovsky, coisa de uns dois anos e mais um pouco lá para trás. Filha de pais russos e nascida em campo de refugiados do regime soviético, essa confreira trouxe consigo na bagagem e na alma as tradições daquelas estepes distantes. Vieram flocos de neve para esfriar seus medos . Trouxe nos olhos, além do verde das taigas, a luz do Sol teimoso daqueles dias longos em tempos de estio. Na Rússia, em latitudes maiores, praticamente não anoitece no verão, são as chamadas noites brancas, quando as lâmpadas podem estar apagadas, mas as almas permanecem acesas. Tudo isso Ludmila colocou na bagagem quando veio para cá.
Lud (é assim que nos permite chamá-la) participou como escritora convidada de nossa primeira Antologia da União Brasileira de Escritores – Seção da Paraíba. Na segunda versão, esteve presente como cronista e organizadora. Daí nossa aproximação que foi se estendendo às famílias; à minha e à dela. Nesses primeiros dias de 2022 lá estava eu de hóspede por dois dias na acolhedora Jacareí, onde ela fixou residência e depositou suas saudades.
Foi então que conheci o Livingstone, o consorte. Nesses dias nada de literatura, só “conversa para boi dormir”, muita cerveja e sem a mínima atenção para aquelas taxas que temos que controlar para o bem estar de nossos organismos, Às favas o colesterol e sua tropa de bandidos de nomes esquisitos (creatinina, glicídio, hemoglobina e outros bandoleiros dessa estirpe). Quem comeu aquelas rabanadas não pode dar atenção a esses malfeitores que acabei de citar. Lud ficou devendo o “prianik”, doce que leva mel e gengibre.
Chuva até não poder mais. Tive tempo de cumprir algumas tarefas nesta engenhoca aqui, mas só. Eram momentos de bem aventurança, nada de preocupações. Causos, muitas risadas e por aí fomos: almas lavadas e estômagos sanchos. Encantei-me com aquela vivenda cheia de livros, quadros, plantas, obras de arte, tudo distribuído com requinte e bom gosto. Lá estavam as matrioskas, e os ícones que os avós cristãos ortodoxos trouxeram da Rússia... e ele também presente: o samovar.
Para quem não conhece, samovar é um utensílio de origem russa, utilizado para aquecer água e servir chá, sendo muito apreciado desde gente mais abastada até por um simples mujique. Tão importante o samovar na cultura russa, que há até monumentos para ele em sua terra natal, a cidade de Suksun, na região de Perm.
Já balalaica é um instrumento de três cordas (raramente quatro ou mais) com o corpo triangular e de madeira. É típico da Rússia. Quem viu o filme Dr. Jivago, logo nas primeiras cenas, o protagonista ao ficar órfão, recebe como espólio familiar uma balalaica. Se alguém viu a fita há de se lembrar.
Estou dizendo tudo isso porque Lud e marido Liv, sem que soubessem, sempre que me refiro a eles os chamo de a Balalaica e o Samovar. Nem desconfiavam disso. Os antepassados de Livingstone não são russos, mas dada a aproximação e cumplicidade que vi nesse casal tomei a liberdade de bagunçar a árvore genealógica de Liv. Para mim ficou sendo russo de origem apesar do nome inglês e pronto. Hão de me perdoar por isso.
Mas por falar no Samovar (o que vive em Jacareí), fiquei sabendo da triste notícia que se encontra hospitalizado. É mais uma vítima da pandemia. Nem faz um mês que me levou para um giro na sua Jacareí, quando conversamos e trocamos diversas impressões sobre a brevidade de nossa passagem por esse planeta. Ah meu amigo, nem imagina como estamos aqui torcendo pela sua recuperação. Guerreiro como é, vai sair dessa.
Enquanto isso, vez ou outra, conversamos com Ludmila. Ela nos passa as notícias. É isso minha amiga, mais que nunca ter forças é preciso. Rogo que de sua alma inquebrantável e generosa brote o som doce da esperança, como o de uma balalaica que ajudou seu povo suportar o insuportável em duas grandes guerras, uma revolução e uma longeva ditadura . E que também sua alma se encha de luz, como numa aurora boreal ou como nas noites brancas. Beijos meu e de Ana.