Nunca tive muita frescura com comida. Não tenho preferências. Comida para mim sempre foi um detalhe necessário. Tem que comer e pronto. Num determinado período da vida, radicalizei. Virei macrobiótico. O problema era a pouca popularidade dessa dieta naquele tempo. Início dos anos oitenta em Porto Alegre. Eu caminhava para uma vida refinada, de maiores cuidados comigo mesmo. Almoçava na Associação Macrobiótica de Porto Alegre e seguia para a Discoteca Pública Natho Hen, ouvir quase sempre o mesmo disco: Oito Sonatas para Flauta e Cravo, de J. S. Bach.
Sonata em Si Menor BWV 1030, de Bach, com a flautista Livia Lanfranchi e o cravista Alessandro Santoro, gravado pela Bach Society Brasil, na Capela São José (Universidade LaSalle), na cidade de Canoas ▪ Rio Grande do Sul.
Durante todo o tempo que morei em Porto Alegre, visitava frequentemente a minha terra natal, Jaguarão. O motivo maior era minha mãe. A criatura mais doce que conheci. A pessoa que me contava histórias na infância. Lia cordéis para mim. Sim, conheci a Literatura de Cordel na fronteira com o Uruguai. Não me perguntem como funcionava a distribuição, mas serviam para me encantar com o “justiceiro” Lampião, Martin Fierro e outros camaradas deste mundo. Isso no tempo em que o mundo acabava logo na primeira esquina e os bichos falavam.
Numa dessas visitas, sem comer carne há uns dois anos, visitei um amigo carnívoro. Respeitei seu mau gosto e aceitei a dose de vodca que me foi oferecida. Uma russa legítima e minha alma sempre teve um pé na Sibéria. A macrobiótica permitia uma dose de bebida alcóolica pura. Maldita permissão. Não evitei a primeira dose e acabamos tomando uma garrafa inteira de vodca. Para completar a missão, meu amigo começou a assar uma linguiça de porco na lareira e abriu um vinho.
Depois do vinho, eu já não sabia de que lado nascia o Sol e gostava de saber que ainda era noite. Tomamos o vinho e comemos uma linguiça de porco assada na lareira. Uma especiaria venenosa para alguém que seguia uma dieta tão nobre. Fui para casa da minha mãe, completamente embriagado e com o fígado em chamas. Abri a geladeira e tentei apagar o incêndio com uma garrafa de Fanta. Geladinha, desceu redondo. Fui dormir prometendo pela milésima vez que nunca mais beberia.
Mentira de bêbado. Nunca cumpri. Aliviei, mas permaneci na mesma pegada. Agora não mais macrobiótico, mas vegetariano. Um purgante existencial para meus amigos carnívoros. Estranhamente longe dos churrascos e dos porres de vinho. Vivia numa busca espiritual. Já com tendências comunistas, leitor de Gorki, Brecht, Gramsci e Guevara. Iniciando uma vida militante que não sabia por onde andar, mas tudo que se movia contra a ditadura militar me apaixonava. A vida num regime fechado, nunca tem cor nem sabor. Só tem cheiro de coturno e de morte.
Anos depois fui morar na Paraíba. Outra cultura, outros hábitos, culinária diferenciada. Inicialmente tive dificuldades de me relacionar com alguns gostos. Coentro principalmente e Inhame. Não que não gostasse. Apenas achava estranho. Aos poucos fui acostumando meu paladar. Ódio mesmo era de coalhada. Não suportava o gosto e muito menos o visual de leite estragado. Fui me adaptando, mas o ódio pela coalhada era uma doença e precisava de cura. Eu não sabia que a cura estava tão próxima. Era só uma questão de oportunidade.
Numa determinada ocasião visitei a cidade de Cabaceiras, no coração do Cariri. A cidade com menor índice pluviométrico do Brasil. Uma cidade bem pobre e lá fui eu com meu cunhado acampar em um sítio. Descobri o prazer de cag⁂r no mato. Sem banheiro, sem nada. Minto, havia uma Lua cheia absurda no céu estrelado. Uma visão do paraíso. Lá estava eu de frente para o luar do sertão. Limpei o boga com capim, pois papel higiênico era uma lenda sulista naquele sítio. Invenção de quem não conhecia os prazeres da vida. Saí do mato depois de ampla contemplação lunar. Uma moça me esperava com uma bacia de água para lavar meus dedos fedidos. Uma gentileza infinita e necessária. Os sorrisos eram os mais acolhedores.
Então fomos jantar. Quando olhei para a mesa, tive um susto. Nos ofereciam o melhor. Pratos e mais pratos de coalhada. Sempre evitei ser deselegante com as pessoas. Aceitei de bom grado e comi rápido para acabar logo. Quando terminei, antes mesmo de levantar a cabeça, uma das moças da casa me trazia mais um pratão de coalhada. Bateu um desespero suado. Mal sabia que lá estava a minha cura. Desde então, nunca mais disse que odiava coalhada. Descobri o sabor de uma especiaria e desde então como até fígado de calango. A vida sempre ensina a quem gosta de aprender. Desde então vejo coalhada como uma das especiarias brasileiras.