Janeiro de 1940. O Brasil vivia em plena ditadura do chamado Estado Novo, que havia sido implantada, três anos antes, por Getúlio Vargas. Os opositores do regime abarrotavam as prisões e Vargas estendia o controle do governo sobre todas as manifestações sociais. No mês anterior, o ditador havia criado o Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP, como ficou conhecido o órgão que tinha, entre outras atribuições, a responsabilidade
de monitorar, direcionar e adequar toda a área cultural do país aos interesses do regime.
O carnaval já era, naquela época, um dos mais importantes acontecimentos da nossa cultura popular. No Rio de Janeiro, o principal evento carnavalesco ainda não era o desfile das Escolas de Samba, mas o concurso para a escolha dos melhores sambas e marchas para o carnaval. Naquele tempo, a importância do carnaval para a música popular do país era tão grande que as rádios e a indústria fonográfica dividiam as músicas em dois grandes grupos, as músicas de “meio de ano” e as “de carnaval”. Essa importância do carnaval não poderia deixar de despertar as atenções do novo órgão criado por Getúlio Vargas. Os concursos de músicas carnavalescas que, até então, eram promovidos pela Prefeitura do Distrito Federal passaram a ser, a partir de 1940, organizados pelo recém-criado DIP.
Naquele momento, as notícias da guerra na Europa ocupavam as manchetes de todos os jornais, mas o Brasil ainda demoraria a ser envolvido diretamente no conflito (somente em 1943 aconteceriam ataques alemães a embarcações brasileiras). Assim, durante aquele mês de janeiro de 1940, o concurso de músicas para o carnaval era um dos assuntos de maior interesse por parte da população carioca. As inscrições para o certame, que eram feitas na sede do DIP, atraíam grande número de autores, que poderiam participar com até quatro composições, inéditas ou editadas em 1939.
Ao contrário dos concursos anteriores e atendendo sugestão dos próprios compositores concorrentes, o DIP deliberou que a premiação não seria mais realizada através do voto popular, mas por decisão de um júri de cinco membros, que foi formado por dois cronistas do rádio, pelos compositores Luiz Peixoto e Pixinguinha e presidido pelo maestro Villa-Lobos que, ao ser perguntado pelo Diário Carioca como havia recebido a sua indicação para o júri do concurso, respondeu: “Com a mesma satisfação com que recebo o convite da Academia de Vienna para juiz nos concursos internacionaes que ela realiza entre os maiores nomes da música moderna”. O maestro, na entrevista ao jornal Diário Carioca, acrescentava alguns comentários sobre o carnaval, finalizando com elogios ao Estado Novo de Vargas:
Villa-Lobos
“As festas, acontecimentos e tradições populares são todos elles inspiradores de themas musicaes [...] o carnaval é sem duvida uma das mais importantes [...] Devo dizer ainda uma outra coisa. Tambem fui musico popular. Comecei a minha vida com ‘Cadete’ e outros. Não poderia deixar de sentir a expressão popular que é o característico da canção do carnaval [...]”
“A musica do carnaval de ha dez annos é muito differente da musica de hoje. O que na verdade penso existir é falta de orientação flagrante na circumstancia de se fazer musica sómente para o carnaval. Acredito, porém, que com o espirito de que se acha animado o Estado Novo esta falta de orientação será facilmente remediada”.
“A musica do carnaval de ha dez annos é muito differente da musica de hoje. O que na verdade penso existir é falta de orientação flagrante na circumstancia de se fazer musica sómente para o carnaval. Acredito, porém, que com o espirito de que se acha animado o Estado Novo esta falta de orientação será facilmente remediada”.
Terminado o período de inscrição, o júri procedeu, durante vários dias, a uma seleção prévia das músicas que iriam participar do concurso, dividindo-as em dois gêneros musicais: sambas e marchas. Foram pré-selecionados dezesseis sambas e dezesseis marchas. Assinavam as músicas os nossos principais compositores populares na época: Ary Barroso, Ataulfo Alves, Wilson Batista, Benedito Lacerda, Roberto Martins, David Nasser, Donga, Haroldo Lobo, Geraldo Pereira, João da Baiana, Braguinha, Alcyr Pires Vermelho, Lupicínio Rodrigues, entre outros.
Após a divulgação das músicas que haviam sido pré-selecionadas pela comissão julgadora, o flautista Benedito Lacerda questionou a inclusão da música “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, entre os sambas que foram selecionados pelo júri:
“Não comprehendo a inclusão de Aquarella do Brasil, porquanto não se trata de uma música carnavalesca, muito embora eu a repute a melhor composição brasileira até hoje apparecida”.
“Aquarela do Brasil”, que Ary Barroso compôs no início de 1939, havia sido apresentada, pela primeira vez, em junho do mesmo ano, em uma peça no teatro de revista, sem nenhuma repercussão. Um mês e meio depois, “Aquarela do Brasil” foi uma das músicas de maior destaque em “Joujoux e Balangandans”, um espetáculo beneficente encenado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Em agosto de 1939, “Aquarela do Brasil” teve a sua primeira gravação na voz do cantor Francisco Alves com uma orquestração elaborada e inovadora do maestro Radamés Gnatalli (a seção de sopros executava, em partes da música, o ritmo).
Segundo o jornalista e escritor Sérgio Cabral, a censura do Estado Novo, com o intuito de incentivar os compositores a criar letras “positivas” para o país e que enaltecessem o valor do trabalho, teria vetado o verso de “Aquarela do Brasil” em que aparece o Brasil como “terra do samba e do pandeiro”. Ary Barroso, com muito esforço junto à censura teria conseguido preservar a letra original da sua música.
No sábado, 27 de janeiro, no estádio do América, com o nome de “Noite da Música Popular”, foi realizado o concurso das músicas para o carnaval de 1940, com a arrecadação da bilheteria destinada às instituições de caridade patrocinadas pela primeira-dama do país. As músicas concorrentes foram defendidas pelos intérpretes em evidência naquele momento, entre eles Francisco Alves, Orlando Silva, Sílvio Caldas, Aracy de Almeida, Dircinha Batista, Moreira da Silva e Carlos Galhardo.
Na categoria samba foram vencedores "Oh seu Oscar" (Ataulfo Alves e Wilson Batista), “Despedida de Mangueira” (Benedito Lacerda e Aldo Cabral) e “Cai cai” (Roberto Martins). Na categoria marcha as premiadas foram “Dama das Camélias” (Braguinha e Alcyr Pires Vermelho), “Pele Vermelha” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira) e “Mal me quer” (Cristovão de Alencar e Newton Teixeira).
“Aquarela do Brasil”, que foi defendida no concurso por Francisco Alves (o cantor brasileiro de maior popularidade na época) não obteve nenhuma premiação. Conta-se que o responsável pela eliminação da música de Ary Barroso teria sido o maestro Villa-Lobos, sob a alegação de que um concurso de músicas para o carnaval não era lugar para patriotadas. Essa versão, ao que parece, é verdadeira porque Ary Barroso deu declarações a um jornal carioca tratando do assunto: “Não sou compositor cívico. Componho marchas e sambas inteiramente despreocupado das complicadas questões do civismo”. E, também, pelo fato de que, pelos quinze anos seguintes, Ary Barroso romperia relações com Villa-Lobos.
Há certa ironia quando se vincula “Aquarela do Brasil” com o ufanismo do período do Estado Novo, vinculação que, a bem da verdade, não pode ser creditada a Ary Barroso que, após a redemocratização do país, em 1945, se filiaria à UDN, partido de frontal oposição a Getúlio Vargas e pelo qual o compositor seria eleito vereador no Rio de Janeiro.
Diferentemente do que, atualmente, ocorre, quando as músicas feitas para o Carnaval expiram ao término dos folguedos, “Aquarela do Brasil” e as músicas premiadas naquele concurso do carnaval de 1940 tornaram-se clássicos perenes da canção popular brasileira.
Apesar de não ter obtido nenhum prêmio no concurso carnavalesco de 1940, “Aquarela do Brasil”, dois anos depois, com a ajuda do papagaio Zé Carioca e do pato Donald, protagonistas do filme produzido por Walt Disney “Alô amigos” (“Saludos Amigos”), com o título em inglês reduzido para “Brazil”, se tornaria a canção brasileira mais conhecida em todo o mundo e seria gravada pelos mais renomados artistas internacionais da época, como Frank Sinatra, Bing Crosby e o guitarrista Django Reinhardt.