É assim mesmo, para certas situações não há explicação. Por mais que tenhamos razão, de nada adiantará nossas justificativas, pois as evidências estão contra nós, muito embora a verdade possa estar do nosso lado. Como no ‘causo’ que vou contar. Antes devo esclarecer que o enredo não é da minha lavra. Ouvi a trama nessas conversas com meus amigos de mesa e de copo. Aqui só dei, ao meu modo, uma temperada no mexerico que escutei dessa gente que anda encangada comigo pelos botequins da vida. Vou contar.
Tiãozinho Jacaré era marceneiro da melhor qualidade. Fabricava, consertava, restaurava e tudo o que era de madeira podia ser com ele mesmo. Manejava com desenvoltura o serrote, o formão, a plaina, o enxó, os grampos, o arco de pua e qualquer outro apetrecho útil à sua arte e ofício.
Era desse jeito. Tudo que era de marcenaria ali nas redondezas era com ele, Sebastião Durvalino. O Tiãozinho por culpa da estatura que não era lá essas coisas. Passava um pouco do um e sessenta e cinco e Jacaré por conta daquela boca enorme que carregava abaixo do nariz. Mas, Tiãozinho, além da fama que ganhara pelo desempenho no ofício, tinha um cartaz danado com a mulherada. Bico doce, diziam. Bom de conversa que só ele. Havia por ali muitos maridos que nem podiam ouvir falar no nome dele.
Mas, nesse enredo não está presente apenas Tiãozinho, temos também Gumercindo, escrevente de cartório, um homão de quase dois metros e bravo como onça com dor de dente. Isso mesmo, bravo e ciumento. Casado com Natércia, mulher de alguma boniteza, ajeitada de rosto e de corpo, tipo “mignon”, mas muito semostradeira. Natércia era do lar. Gu e Ná não tinham filhos e viviam em relativa (eu disse, relativa) harmonia. A paz era quebrada por alguns momentos de ciúmes quando saiam juntos e Gu achava que Ná estava se “amostrando”. Agora sim, os acontecimentos.
O fato se deu na localidade onde moravam esses três, uma cidadezinha da Alta Mogiana cortada pela estrada de ferro lá no interior de São Paulo. Gu e Ná residiam na rua da estação. Quem mora perto de linha férrea sabe que quando o trem passa ocorrem trepidações. Na casa desse casal não era diferente; era o trem passar e o paneleiro dar sinal de vida na cozinha e o guarda-roupas abrir a porta no quarto do casal...
Gumercindo ficava irado quando passava o trem das vinte horas. Ele ali se refazendo dos aborrecimentos do cartório e a casa chacoalhando. Ainda arrebento esse guarda-roupas, dizia ele quando via a porta escancarada depois de passar o trem. Não podia fazer nada contra a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, então quem pagava o pato era o móvel que ficava em frente a cama do casal. O trem das dez ele não via passar, o que evitava algum aborrecimento matinal.
Para acabar com a chateação do marido Dona Natércia resolveu mandar consertar o guarda-roupas antes que Gumercindo o destruísse com socos e pontapés. Resolveu chamar um especialista. Mas, quem? Quem? Só poderia ser ele, Tiãozinho Jacaré. Ele veio.
— Quero que o senhor dê um jeito neste guarda-roupas. Sempre que o trem passa ele escancara as portas. Meu marido está que não aguenta mais isso. — Vou dar um jeito. Mas preciso ver o que acontece. Quando o trem passar eu vejo o que está fazendo a porta abrir. Chego um pouquinho antes das dez. A senhora pode deixar comigo.
Ela deixou por conta dele. Pouquinho antes das dez ele chegou. — Falta um pouquinho para o trem passar. A senhora me dá licença. Trouxe uma lanterna e vou ficar dentro do guarda-roupas e vejo o que tá acontecendo.
Ele entrou, ela pediu licença, perguntou se estava tudo bem e fechou a porta. Só que não foi o trem que apareceu primeiro, mas sim Gumercindo que viera trocar de roupa, pois derramara café na camisa. Ao abrir a porta do armário viu aquela criatura lá dentro.
— O que você tá fazendo aí dentro sujeito safado?
— Se eu disser pro senhor que estou esperando o trem, o senhor vai acreditar? Estão vendo? Há coisas que não tem como se explicar, não é verdade?
O que aconteceu com Tiãozinho Jacaré fica pra outra ocasião. O guarda-roupas não existe mais. Gu e Ná continuam juntos, só que depois do ocorrido ele sempre avisa quando está para chegar.