Ninguém é feliz. Com sorte, a gente é alegre....
A vida gosta de quem gosta dela.
A Suprema Felicidade, filme de Arnaldo Jabor
A Suprema Felicidade, filme de Arnaldo Jabor
Continuo a falar da Felicidade... da Felicidade do filme A Suprema Felicidade, do polêmico Arnaldo Jabor, falecido no último dia 15. Jabor disse que nasceu dentro de uma câmera e que este filme é uma volta ao passado, em que devolve sua vida a seus pais e ao Rio que o viu crescer. Comenta sobre a nostalgia do que era ser cineasta na sua época e dos sonhos dos “Cahiers du Cinema”:
“Conspirávamos contra o campo e contracampo, contras os travellings desnecessários, contra o happy end, contra a fórmula narrativa do cinema americano e acreditávamos que éramos parte da salvação política do País – nossa câmera era um fuzil que, em vez de mandar balas, recolhia imagens do País para ‘libertar’ os espectadores”.
Com tais comentários em seu texto “Eu nasci dentro de uma câmera" (Estadão, 2010), Jabor também se mostrava nostálgico quanto ao seu cinema:
“...havia até uma ingênua verdade, pois o cinema moderno perdeu a magia crítica de antes, porque, quanto mais se aperfeiçoam as maneiras de devassar a ´realidade´ mais distante ela fica.”
Essa nostalgia for the past, tema recorrente na Felicidade, é também uma nostalgia do cinema à qual Jabor se identifica:
“Meu Deus, que saudade do cinema clássico! Que saudade do sonho, da utopia fílmica dos anos 50 e 60, alimentada pela Cahiers Du Cinema e pelos círculos de fumaça dos `Gitanes` sem filtro. Hoje, o cinema é nu. Está exposto nas lojas, feiras, e bancas de jornais, está nos hotéis, na ponta dos dedos dos insones, está rodando bolsinha nas ruas. Tenho saudades da sala escura, do cinema segredo, o cinema tesouro, o cinema dos pobres tímidos, o cinema como uma ilusão que levava ao êxtase.”
E ele cita Paulo Emílio Salles (ia-se ao cinema como ao bordel – em busca de ilusões):
“Ah! Como era bom esperar um filme do Fellini, a cada ano... quando vem o novo Antonioni, o novo Bergman?”.
Com toda essa alusão ao escuro da sala, ao prazer das ilusões, não posso deixar de me reportar ao crítico Roland Barthes, no seu texto “Ao Sair do Cinema”:
A sala de cinema...é um lugar de disponibilidade... a ociosidade dos corpos, que melhor define o erotismo moderno... um casulo cinematográfico... o ´escuro´ do cinema... não é apenas a própria substância da divagação... é também a cor de um erotismo difuso...”
O filme A Suprema Felicidade conta a estória do Rio de Janeiro dos anos pós-guerra, do ponto de vista de um menino, num tempo tripartido entre infância (7anos); pré adolescência (uns 13?) e o início da idade adulta (19), vividos por Caio Manhente (da novela Viver a Vida), Michel Joelsas (O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias) e Jayme Matarazzo (da novela Escrito nas Estrelas). Parece que ando em dia com as novelas!Rituais de passagens são sempre dolorosos, e o de Paulinho não poderia ser diferente. Afora todas as dores típicas da idade (bullying, iniciação sexual, afirmação), ele ainda tinha a sua própria (a sua casa, sua mãe e pai), embora cada vez que uma fase dessas é apresentada, seu olhar é desviado para o mundo externo, como as estrelas que seu avô aponta, como um lugar a sonhar.
Durante todo o filme podemos ler o texto mordaz e picante de um Jabor jornalista, sua profissão, então nos mais de 15 anos, profissão que, segundo ele, iniciou pelas dificuldades que era fazer cinema (um texto fica pronto em alguns minutos enquanto um filme, em quatro anos).
Tanto tempo depois, uns 20?, diz ter sentido desejo de retomar o “Ação”, para filmar essa nostalgia latente. Um passado principalmente relacionado ao espaço da sua cidade maravilhosa e tão particular. Um Rio antigo, com figuras emblemáticas, que talvez até recentemente tenham vagado em sua memória, organizadas de forma até mais teatral (cenas mais estanques), e permeadas por marchinhas, pornochanchadas, Chacrinha, Lapa.
O belo poema de Drummond, Memória, é a Epígrafe do filme: “E as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão”.
Foram sobre essas coisas findas que Jabor montou o seu quebra cabeças sobre a Felicidade. Felicidade que se concretiza na pessoa do personagem do avô (Marco Nanini), numa atuação que nos emociona, mas especificamente na cena final, onde esse homem tão raro, assim como Dustin Hoffman como o índio em Pequeno Grande Homem, “viaja” para o pico das montanhas nevadas ao encontro com a finitude, Noel também pede a Paulinho que o deixe ir. Não para as montanhas, mas para à Lapa, para o samba, e todas as cuícas que uma roda desse ritmo possa oferecer. Régua e Compasso e Estrelas, são a sua cadência; E um terno de linho branco com passos largos e coreografados pela emoção da vida, compõe o resto. De relações de avô e neto, o cinema está bem representado. Basta conferir Cinema Paradiso e Tempero do Amor.
Nessa busca pelo tempo, pelo “éramos felizes e não sabíamos”, e pelos “tempos que não voltam mais,” encontramos o vendedor de jornais e comprador de objetos obsoletos (Emiliano Queiroz), sempre estupefato diante das relíquias que a mãe de Paulinho vende. Como vender esses objetos tão ricos, cheios de significados de uma vida inteira?
Já o Seu Noel, quando já não distingue muito bem os tempos verbais, lhe diz: “Nada do que o Senhor me compre, me terá serventia....”.
Acredito que, tem um tempo na vida, um tempo em que as pessoas já começam suas despedidas, em que o desapego é voraz. A contagem regressiva havia começado, e mais que objetos, o ser humano está vivenciando o tempo em cada seu segundo incomensurável – o instante!
Também há o vendedor de pipocas (João Miguel), cujo personagem é o professor de safadeza dos pirralhos. Só fala em comer as meninas. E nada passa por aquelas pipocas. A menina mais assanhada, a mais pudica, a mais dissimulada... e todas as estratégias de fazer e principalmente de contar o sexo roubado por trás dos terrenos baldios. As pipocas e o cinema dialogando intrinsecamente sobre as fantasias e desejos sexuais de toda uma rua – Uma rua chamada desejo! Uma rua ainda de um Rio tão bucólico, arborizado, apaziguado, onde nenhuma Tropa de Elite ousou imaginar.
Acho este filme uma viagem nostálgica e triste ao passado. Triste mesmo. E mais triste ainda, a vida das mulheres dessa colcha de retalho carioca. Mulheres essas sempre tão presentes nos textos de Jabor. Foi dito que o filme não é de um todo autobiográfico, mas permeado pelas suas memórias sim, tanto da cidade quanto da vida. E, com certeza, as mulheres da sua vida, também se fizeram presentes. E se não suas, mas da sua geração, da sua Copacabana, princesinha do mar. Um Rio de Janeiro que muito lembrava o Rio de Janeiro do meu pai, que lá morou solteiro, e comigo pequenininha (Claro que não lembro), mas na sua primeira experiência, falava sempre desse Rio que o avô Noel vive e rememora, assim como um Marcelo Mastroianni viveu em alguns de seus filmes (Estamos todos bem).
Mariana Lima, cujo talento se uniu à sua beleza de camafeu, nada mais nostálgico!, faz tão bem a mãe que um dia foi alegre, dançante e feliz. Mas que um dia ficou triste para alegria do seu marido (Dan Stulbach), que acompanhava essa mudança de humor como algo inerente à sua supremacia e felicidade de seu dono. Mas, como tantas outras mulheres no mundo pós-guerra, se deprimiram. A opressão do marido aviador e que vivia nas nuvens, não lhe dava espaço para uma realização com os pés fincados ao chão. Quando ela quis trabalhar, foi interditada, e ouviu a voz autoritária do marido: “Bote o jantar!”. Passou a vida, desconfiada, passou a vida esperando, sentada na escadaria, que algo mudasse; passou a vida esperando... Godot!
A mãe que, junto com sua alegria, abandona sua veia artística (dançava e cantava), seus anseios, e se casa. A escolha cruel estava feita. Sem poder sair, trabalhar, a tal depressão pós guerra das mulheres.
O próprio Jabor tem um texto sobre o filme As Horas, “A depressão nos salva da alegria de mercado”, onde comenta sobre a depressão pós-vitoriana, dos anos 50´s, e as de hoje:
“As mulheres carregam o fardo da dor histórica, por serem mais sensíveis e dominadas. Os homens, donos da ilusão fálica, escamoteiam essa dor como uma mania qualquer, com uma obsessão bélica, financeira ou política, enquanto as mulheres ficam com essa dor incompreendida.
Enquanto a mulher espera, o marido vai sonhar no bordel, com a virgem inacessível... Ah! As Lolitas, sempre com uma virgindade para manter os homens no desejo! E que tristeza constatar que, enquanto as mulheres viviam aprisionadas nos porões, os homens, desde quando começam a engatinhar, flutuam na busca do sexo, da masturbação - Sexo, sexo, repressão, sexo! Quanto distância! que ainda hoje nos tornam seres tão estranhos, homens e mulheres. Quanta distância e quanta diferença! E Jabor, a toda hora falou desse homem do seu tempo, fosse o padre, os alunos do colégio marista, as pontas de esquina, fosse a Lapa, tudo era sexo, pipocas, cinema e urubus!
E Tammy Di Calafiori, que menina linda que é, e como ficou ainda mais como Marilyn? Outro camafeu! com olhos de Capitu! - já disseram. Tão jovem atriz e já tão exuberante diante das telas. E que streap-teases! Com todos os desejos masculinos iluminando sua performance, e nem por isso, menos aprisionada nesse mesmo corpo do desejo. Não mais presa à uma domesticidade do lar, mas às garras de uma mãe alcoólatra, igualmente subjugada ao seu macho cafetão, que lhe faziam de moeda cara, frente à infantilidade bestial masculina. E haja Money dos voyeurs abobalhados diante do desejo não realizado. Como li numa crítica:
“E, pelas inúmeras cenas de mulheres seminuas, fica uma sensação de que os fantasmas da pornochanchada ainda sussurram palavras de conforto no ouvido de Jabor”.
Maria Luiza Mendonça faz a cafetina da própria filha, igualmente presa aos vícios, usurpação, do seu homem, que nem com sua maquiagem borrada pelo choro de abandono, consegue sensibilizar à brutalidade do cabaré. Uma ponta é verdade, mas com tanta propriedade, já que o seu talento e beleza não são novidades no mundo do cinema.
A igualmente camafeu, Maria Flor, faz a louca do sobrado. Uma perfeita madwoman in the attic! A mãe pulou da torre (quem sabe por motivos de uma Rapunzel entristecida também), e ela a psicografar as cartas dessa mãe. Repetindo o ciclo das dores de mãe para filha. Também tem fascínio pela torre suicida e por mortos, vestígios do além, auras, enfim... Tudo grotesco e sob os véus do humor gélido. Com seu vestido belíssimo de cetim, também seduz Paulinho para o amor, amor esse que logo logo Paulinho percebe fazer parte da manipulação das mulheres ensandecidas e histéricas. Essa atriz de nome lindo, também nos comove como essa menina-louca, menina-veneno, que usa o mausoléu do espaço da casa, para sobreviver à uma realidade que já não faz, ou nunca tenha feito, parte do seu cotidiano. Imaginar é preciso, e essas mulheres todas, vivem do imaginar, sonhar com algo não tão palpável que aquele tempo ainda não vislumbrava para nós mulheres. A vida era masculina, não havia espaço para as mulheres fora do espaço da mãe, da santa e da mudana. E da louca! A Louca da casa!
Certa vez, li Astier Basílio criticar Jayme Matarazzo. Pessoalmente, gostei dele e não achei sua interpretação pastel. Aliás a própria forma "pré-retomada do cinema brasileiro", de que ele fala, achei deliberada. É como se a forma de fazer cinema de Jabor estivesse profundamente relacionada com suas saudades, sua melancolia, e sua visão plasmada de um Rio que não existe mais.
Como o próprio Jabor colocou em algumas entrevistas, o seu filme, tem um quê Feliniano de Amarcord; um Amarcord Carioca, perfumado pela atmosfera do cabaré do Mangue, mas também com sangue grotesco de assassinato de Polacas, e de personagens não menos grotescas como o de Elke Maravilha (a avó), que aparece como nunca dantes, sem suas armaduras de costume, ou nenhuma referência aos seus tempos de jurada de Chacrinha.
E, tanto em relação ao filme como na vida, também adotei como um mantra uma das falas de Noel: “Nada é só bom!”