Na lâmina que divide o dia da noite repousa o equilíbrio diário. É a cena que volta a se repetir quando a penumbra, horas depois, se aquece e aclara. É um fio por onde se aprumam todos os passamentos, pensamentos, onde se ajustam corpos humanos e celestes. Vida, morte. É o recorte perfeito, o fio do corte instantâneo em tons alaranjados/vermelhos ou azuis/negros que pipocam efeitos pirotécnicos na direção do oeste, para horas depois ressugir do leste.
E as lentes por mais que tentem são incapazes de captar tal perfeição que o olho único pisca em incredulidade. Mais um ato de amor entre céus e terras e horizontes. Pincelado por piscantes celestiais seres que começam a se apresentar ou displicentemente se arretiram. Composição perfeita.
Uma fração de segundo é a duração do momento do justo equilibrista dia, enigmático tempo curto e eterno. Por vezes, ruidoso, outras tantas quase um monastério de silêncio e paz. Irracional e pragmático, tempestuoso e calmaria de ventos. A junção e disjunção dia/noite é a materialização aos olhos do tempo. Uma forma disforme de existir.
Sempre único é navegar o dia, por mais que pareça repetitivo. Pobre ser homem incompetente para perceber o ineditismo de cada segundo de sua passagem chamada de vida. É um marinheiro sempre novato na embarcação a se confundir com nós, vagas, aves e ilhas. Náufrago contínuo mesmo embarcado, poeta sem consciência das gramaticais construções que erige. Tijolo a tijolo, só enxerga aquela junção, sem elucidar o todo. Ser mareado pelo balançar do existir.
E o dia passa, mesmo sendo noite. A lâmina faz a imperceptível incisão e parte. Quando retornar terá mudado. O olhar tenta capturar e revelar a força do instante. Ficará a eternidade de sua presença, fixo, semelhante a um belo Van Gogh, um Monet, que a cada olhadela revela um detalhe, um significado. E, sem nunca se repetir, avança pelas trincheiras do novo pequeno renascimento.
Do novo instante, um “desdia”, uma “desnoite”, recuo aparente, mas inexistente do que já ocorreu do giratório relógio, 24 horas antes. É uma nova passagem. Hora de suspender a vista, embarcar, colidir com a própria rotação de ser. E saber que ali teve a face beijada pela brisa enviada para acariciar a contemplação. Entardecer, amanhecer. É a pausa do silêncio do exato instante entre duas batidas do coração. Talvez melhor definição de paz.