I Pra resolver um problema de pele, nos anos 70, saí da agência centro do BB em João Pessoa, onde trabalhava, e subi a Rodrigues de Aqui...

Doze cenas curtas com Flávio Tavares

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I

Pra resolver um problema de pele, nos anos 70, saí da agência centro do BB em João Pessoa, onde trabalhava, e subi a Rodrigues de Aquino, direto ao consultório do Dr. Arnaldo Tavares, que – depois – soube ser pai do artista plástico Flávio Tavares. Parei no início do longo corredor da casa antiga, deslumbrado com o mundo de livros que cobriam as paredes até o teto! Por volta de 2007, quando fui descrever a biblioteca do protagonista de meu romance Relato de Prócula, que seria no sítio Mundo Novo, em Pombal, de meu colega de elenco d’O Salário da Morte, Horácio de Freitas, juntei as duas lembranças e descrevi:

- “Os livros cobrem as paredes da sala enorme, bem como os dois lados do imenso corredor, enchem dezenas de estantes em mais três compartimentos do térreo e acompanham a escada para o andar de cima”.

Muito bom ver, décadas depois, os desenhos do Doutor, divulgados na internet pelo Flávio.

Arnaldo Tavares
II

Quando, ainda no século passado, eu disse à marchand Rosely Garcia, que iria levar para casa minhas telas que estavam lá, à, venda, na sua galeria, a Gamela, perguntou-me o motivo. Como insistiu, falei-lhe que soubera de um diálogo entre Flávio e Miguel dos Santos – bastante negativo – sobre elas, “e confio demais na opinião dos dois pra não as levar em conta.” Flávio ligou. Gentleman por natureza, disse-me que sábio fora Miguel, que, ao vê-lo apontando insuficiências num de meus trabalhos, permanecera calado. E me disse: “Homem, falhas todo mundo tem. O que poucos possuem é o seu evidente talento. Leve os quadros de volta pra Rosely”.

Não levei. E pararia de pintar em 2004.

III

Em 94 fiz uma mostra no Banco do Brasil, agência centro, dentro da campanha contra a fome e a miséria, do Betinho, exposição que a Rosely acabaria levando pra sua galeria, ao ver confirmada sua previsão de que ali não se venderia nada. Mas valeu, porque Flávio me deu, no vernissage, ali, um magnífico presente: o antigo e espesso volume “Shakespeare´s Complete Works,” edição de 1876, de que tanto me serviria ao fazer minha versão do “Hamlet” para a “História Universal da Angústia”, que sairia em 2005 pela Bertrand Brasil.

flavio tavares artes plasticas paraibanas

IV

Lembro-me de quando vi pelos jornais – quando trabalhava em Pombal, anos 60 - fotos dos primeiros quadros de Flávio, ele muito novo e já fazendo sucesso, telas ainda cheias de figuras com olhos grandes como os das crianças de Wellington Virgolino, mais a força plástica de Siqueiros.

V

Em outubro de 2007, a pedido do Durval Leal, fui – com uma equipe de televisão - entrevistar o Fred Svendsen, o Clóvis Júnior e Flávio, cada qual no seu ateliê, os três de saída para mostras internacionais. Vi o mundo ingênuo – naïf - de Clóvis, ante sua décima primeira exposição no exterior, agora em Londres; vi o mundo alienígena de Svendsen, que ia pra Washington, vi o mundo mágico do Flávio, que partia – pela quinta vez - para a Alemanha. Seu ambiente – no Altiplano Cabo Branco - me surpreendeu. A oficina, a bottega do mestre, é imensa, paredes externas cobertas de hera, o interior cheio de quadros seus de todas as épocas e tamanhos, o conjunto com algo da Macondo de Gabriel García Márquez.

Acerco Pessoal
VI

Em 1999 e 2000 pintei 70 retratos de paraibanos de grande envergadura, comissionado pelo jornal O Norte, trabalhos que foram publicados um a cada domingo, sempre na capa do caderno FIM DE SEMANA. Quanta gente brilhante: Celso Furtado e Leandro Gomes de Barros, Assis Chateaubriand e Augusto dos Anjos, Zé Américo, Zé Siqueira e Zé Lins, Pedro Américo, Sivuca, Elba Ramalho e João Câmara, Antonio Dias, Walter e Vladimir Carvalho, Luiz Carlos de Vasconcelos, Everaldo Pontes, Marcélia Cartaxo e José Dumont, Marcus Villar e Paulo Pontes, etc etc etc e bote etc nisso, ... e Flávio Tavares. Como todo sábado eu estava entre as máquinas do jornal, controlando com os técnicos as tintas da impressão e corrigindo-as quando necessário, imagine o prazer quando vi o rosto dele impresso com a perfeição possível no momento, prevendo – como aconteceu – o telefonema dele repreendendo-me, rindo, porque eu estaria passando para o público – naquele retrato - uma propaganda “enormemente” enganosa.

WJ Solha
VII

Suas aberturas de mostras, como as noites de autógrafos do poeta Sérgio de Castro Pinto – são ( ao contrário do que eram meus vernissages e lançamentos de livros ) grandes acontecimentos. Lembro-me de uma ocasião dessas, na galeria da Usina! Muito quadro, muuuita gente! Ali tive o prazer de rever, detalhe por detalhe, o maravilhoso “Pedra do Reino”, que ele fizera com o Sérgio Lucena ( e que eu tantas vezes vira no Espaço Cultural) , e de ver ao vivo a tela que ele pintara durante o documentário que a Elisa Cabral rodara a seu respeito, onde o víamos pintando o próprio quadro em que estava inserido, ele no pátio interno da igreja de São Francisco, rodeado de uma multidão de criaturas impossíveis, a não ser em sonhos. Gosto das criações superpopulosas, dele – como “O Reino do Sol”, que ele faria, anos depois, para a Estação Ciência. Mas também das bastante simples, como a da mulher sentada numa rede vermelha, no terraço iluminado de uma casa às escuras. Gosto da série que ele fez da fazenda Boi Só, onde, com Eleonora Montenegro, trabalhei numa adaptação de Marcus Vilar do conto “Casa Tomada”, de Cortázar. E, claro: é maravilhosa, no livro que ele lançava naquele momento, a foto de sua grande obra, “Avohai”, encomendada pelo Zé Ramalho. Agora, na pandemia, meio mundo acompanhou pela internet, ao vivo, sua oportuna e bela pintura Claustrum sendo criada.

Flávio Tavares
VIII

Já vi – ao vivo - Flávio desenhar ( como agora víamos na internet – até se dar a censura absurda que ele sofre agora ). Flávio ensinava na escola de Arte de Marlene Almeida - que funcionava num daqueles castelinhos da Praça da Independência - e fui um dos seus alunos. Com grande folha de papel em branco num suporte vertical, pincel ensopado de nanquim, começou um traço lá do alto – ante a sala silenciosa – delineou, rápido, os pés de uma mulher, desceu - ágil - pelas curvas de uma das panturilhas, coxas, nádegas, costas, ombros, cabeça, continuou nos braços até as mãos, lá em baixo – no fim do mergulho - e, sem interromper a linha, começou a subir – mãos, braços e seios, o ventre enxuto, o outro lado das coxas, joelhos... e emendou, lá em cima, nos pés, exatamente no ponto em que tudo começara. Coisa de mestre.

IX

Fui – anos atrás, quando ainda pintava - à casa do professor Luneta, entregar-lhe a natureza morta que me comprara, vi o grande piano de cauda coberto por um pano, na sala, e, na parede, um quadro enorme também coberto – estava-se em reforma – e minha curiosidade fez com que o italiano desvendasse pra mim um quadro de Flávio que eu jamais vira: um precioso trabalho em cinza, prata e pérola, acho que a obra dele que mais me fascinou, até hoje.

Flávio Tavares
X

Voltamos para 1994. Rosely estava remontando aquela minha mostra da campanha do Betinho, agora na Gamela, quando chegou Flávio com o casal Jürgen e Maria do Carmo Voght ( casal de que eu acabaria pintando um retrato duplo tendo ao fundo, como réplica, “O Casal Arnolfini”, de Van Eyck ). Rosely pôs os três sentados juntos e me fez trazer e apresentar-lhes, um por um, os vinte e tantos quadros que eu trouxera. Jürgen comprou um desses trabalhos (“Os Gritos”, que levaria pra Berlim) e Flávio, ao ver meu trabalho “A Grande Festa de Minha Chegada”, propôs uma inimaginável troca por um quadro seu que fazia parte do acervo de Roseli. E como foi bom vê-lo analisando essa minha composição, num de seus programas pessoais pela internet!

Flávio Tavares
XI

Morri, cheio de bala, no filme Soledade, baseado em A Bagaceira, do José Américo, ao pé do retrato – ... feito por Flávio - da atriz Rejane Medeiros – a Soledade do filme, ela ali, na verdade, mãe do edipiano Lúcio Marçau ( Ney Sant´Anna ), cena que me despertou para o livro “Zé Américo foi Princeso no Trono da Monarquia”, que seria lançado pela Codecri em 82.

XII

Uma lástima, a censura de 24 dias que ele vive agora.

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