“É Deus no céu e esse homem na terra”. O menear das cabeças em gesto de evidente aprovação traduzia a grandeza do vulto a quem na varanda,...

Bloco dos sujos

conto nostalgia carnaval folia traicao
“É Deus no céu e esse homem na terra”. O menear das cabeças em gesto de evidente aprovação traduzia a grandeza do vulto a quem na varanda, cercada de amigas, Dona Marina então se referia e a quem, no meio da tarde, acabara de oferecer um pedaço generoso do bolo de limão mais desejado das redondezas.

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D. Abramov
Doutor Francisco, o homenageado, figura reta e solene, jamais recusaria uma fatia daquelas por mais que temesse o descontentamento da esposa. Esta não o deixava ir à rua, àquela hora, sem um bom suco de frutas, biscoitos caseiros e queijo de boa procedência, fosse qual fosse o tempo. Portanto, nada lhe escapava da rotina naquele dia em que também saíra de casa bem alimentado.

Lanches preparados com tanto capricho por duas belas senhoras e em volume assim redobrado era tudo o que, em sua idade e em benefício da própria saúde, ele não deveria aceitar. E era o que Dona Tereza, sob hipótese nenhuma, deveria saber.

Ah, dona Tereza, um coração de ouro, ser de virtudes incontáveis, companheira dedicada, mãe extremosa de quatro filhos. Mas sem os temperos de Dona Marina.

Que ninguém pense mal desse trio. Ele fora à pia batismal com a graça de Francisco e fez jus ao nome no curso de uma vida inteira dedicada ao tratamento e à cura de males diversos. Mais um pouco e atrairia passarinhos. Era médico de família, assim chamado quem nesse ramo atendia em domicílio a troco mesmo de galinhas e perus sempre que faltasse dinheiro a uma parte um tanto expressiva da vasta e diversa clientela.

Diga-se que Dona Tereza também merecia o nome de santa. Viúva com traços ainda nítidos da mocidade, Dona Marina, por sua vez, não dava a Dr. Francisco mais do que fatias gordas dos seus bolos.
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Prawny
Aos outros homens da cidade, sem a admiração que sentia pela figura humana do médico, nem isso.

Com os zelos da mulher, os bolos da amiga, os abraços do prefeito e os cumprimentos sinceros da gente do povo, cumpria o bom homem, rotineiramente, o papel a si reservado por desígnios divinos. Ninguém sabe de haver ele erguido a voz para quem quer que fosse. Minto: respondeu à altura, certa vez, ao chefe político regional temido em razão de histórias dignas dos filmes de Francis Ford Coppola. E o poderoso chefão encolheu, recuou.

Pouco depois, houve quem nele percebesse ares de tristeza. Outros, contudo, asseguravam que isso não era fenômeno recente. Ele sempre se fizera acompanhar da sisudez e da melancolia. Alguma coisa forçava seu distanciamento dos humanos. Talvez a admiração e o respeito desmedidos a si expressos por ricos e pobres fossem por ele entendidos como atos deliberados de isolamento e rejeição. Vá lá saber.

No sábado daquele carnaval, um desafio surgiu do grupo de arruaceiros há bom tempo na mira da polícia: dar um banho em público no Dr. Francisco. Acabar com aquela pose, manchar aquele paletó branco, macular aquela alma pura.

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D. Abramov
E assim foi feito. Três dos moleques simularam a perseguição a outros tantos e, à passagem do bom homem, nele atiraram, “acidentalmente”, o conteúdo barrento de três baldes. Testemunhas da cena jamais concebida reagiram de forma diferente: algumas mulheres gritaram horrorizadas, Seu Joaquim largou a plenos pulmões um “filhos da put*” e Seu Pedro, o bodegueiro, correu em busca do revólver.

Dr. Francisco, estático, logo recuperou os movimentos. Olhou a mancha que lhe ia do nó da gravata à bainha da calça, sacudiu braços e pernas como se desejasse apressar a secagem da roupa e abriu um riso tímido que logo se alargou até explodir na mais sonora das gargalhadas. A cena toda era absurdamente inversa aos seus modos de monge. O homem ria como nunca o fizera em toda a sua vida longa, enfadonha e sem graça. Há quanto tempo esperava por aquilo...

Contaram-me que passou o resto do Carnaval a dançar com os meninos.

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  1. Caro Frutuoso
    Seu comentário retrata bem uma das épocas, digamos, áureas dos nossos carnavais, quando a meninada fazia inocente "mela-mela" (às vezes nem tão inocente...) jogando água em carros que ousavam ou necessitavam trafegar pelos front's de batalha que armavam.
    Foram tempos bons, em que até a lama era de boa qualidade, pois resumia-se a terra e água relativamente limpa, pois quase sempre se originava do jardim de um dos combatentes.

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  2. - Grato pela atenção, amigo.

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