O médico e jornalista Marcus Aranha, para comemorar o centenário de nascimento da professora Anayde Beiriz, publicou a correspondência de amor, até então inédita, que ela manteve com Heriberto Paiva entre 1924 e 1926. O pesquisador considera que o livro é tão somente a menor das homenagens que se pode prestar" à polêmica figura feminina nem sempre avaliada com justiça, sobretudo em razão das paixões históricas decorrentes de 1930.
Mas, se levarmos em conta que, pela primeira vez, o leitor pode conhecer a personagem através de suas próprias idéias e afirmações, temos de concluir que o organizador presta à Pantera dos Olhos Dormentes a maior de todas as homenagens, devolvendo a palavra a quem teve de suportar, em silêncio, décadas de julgamentos sumários, presididos pelo preconceito e pela infâmia.
Diferente do que afirmou José Joffily, vamos constatar, neste livro, que Heriberto Paiva não foi um namoro efêmero, mas o grande amor da juventude: ela com 19 anos, ele com 18. Ela professora em Cabedelo, ele estudante de medicina no Rio de Janeiro.
São cartas de exaltada paixão e juramentos de eternidade, romanticamente delirantes, na perspectiva de que aos que amam tudo é possível. Heriberto tenta desafiar a família, que não aceitara Anayde, e passa a tratá-la como noiva, fazendo planos para o casamento, idealizando filhos, pedindo-lhe que assine o nome Paiva, como se fosse casada.
A jovem professora sonha os mesmos sonhos que logo se transformam em decepção e sofrimento.
Heriberto, machista e inseguro, acaba cedendo à pressão e às calúnias da família. Vem o primeiro rompimento. Silêncio e abandono. Um ano depois, o pedido de perdão que Anayde, apaixonada, aceita.
Nesta nova fase do namoro, ela cede às exigências de se afastar da vida intelectual e social, mesmo assim não tarda a nova crise de desconfiança do namorado. Mais acusações injustas que ela responde com mágoa e altivez, vendo cumprir-se o destino de que tinha medo.
Heriberto se revela um fraco, sem dimensão para acompanhar o perfil do novo ser feminino que a professorinha de Cabedelo prenunciava.
Anayde nasceu pobre, bonita e inteligente. Estudou e queria da vida mais do que estava tradicionalmente estabelecido para as mulheres do seu tempo e de sua condição social. Além de casar e ter filhos, queria também trabalhar, escrever, integrar-se aos conhecimentos culturais que marcavam o início do século XX. Hoje, seriam aspirações naturais. Mas, no meio limitado em que viveu, estas aspirações constituíram a origem de sua tragédia pessoal.
Não bastava ser bela e intelectualmente preparada para vencer a barreira dos preconceitos sociais. Ela pertenceu ao grupo dos Novos, frequentou saraus literários, foi recebida em residências de famílias tradicionais, destacou-se nas crônicas sociais, colaborou em diversos periódicos, venceu concurso de beleza, mas esbarrou no moralismo hipócrita do conservadorismo. O namoro com Heriberto Paiva deixa claro que frequentar não significa ser aceita.
Anayde pensava e tinha identidade, atitudes proibidas ao ser feminino do seu tempo e que continuaram proibidas ainda por algumas décadas. Pois pensar e ter identidade é ser livre. Condição que a sociedade patriarcal negou radicalmente à mulher, submetendo-a à tutela do pai ou do marido. Reprimindo qualquer anseio de afirmação pessoal.
Manter a mulher confinada aos limites do lar fazia parte deste processo ideológico de submissão que também imprimia à palavra liberdade uma conotação depreciativa. Referindo-se ao ser feminino, liberdade sempre se confundiu, propositadamente, com devassidão e libertinagem. Até bem pouco tempo. E a ameaça da mancha moral, mais devastadora que a lepra, foi a grande força repressiva na manutenção da mulher submissa, dependente, sem vez e sem voz.
Com sua maneira incomum de ser, pensar e agir, Anayde desafiou o estabelecido. Transgrediu regras de conduta que hoje parecem insignificantes, mas que escandalizavam a sociedade dos anos 20, na rigidez do seu falso moralismo. Ter os cabelos curtos, usar batom, expressar opiniões próprias, integrar grupo intelectual predominantemente masculino já seria o suficiente para o processo inquisitorial.
Mas é inegável que o amor por João Dantas e os desdobramentos históricos de 1930 precipitaram em tragédia o Destino da jovem professora. E a impiedade dos vencedores encarregou-se do julgamento deformador.
Publicando esta correspondência, Marcus Aranha torna possível que Anayde Beiriz seja enfim conhecida pelos sentimentos e valores que nortearam a experiência de seu primeiro amor e também pelo projeto de vida que se revela nesta fase. O pesquisador cumpriu a profecia do poeta Vanildo Brito:
"Anayde Beiriz, a mão do tempo
Refez a tua face peregrina!"
Refez a tua face peregrina!"