Nota
Carlos Nejar (Porto Alegre, 1939), é poeta, ficcionista, tradutor, crítico literário brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filosofia.
Acerca do livro "Glacial", do poeta capixaba Jorge Elias Neto, ele escreve o seguinte:
Carlos Nejar (Porto Alegre, 1939), é poeta, ficcionista, tradutor, crítico literário brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filosofia.
Acerca do livro "Glacial", do poeta capixaba Jorge Elias Neto, ele escreve o seguinte:
A glacialidade no fogo
Carlos Nejar
Jorge Elias trabalha o silêncio, seja neve, seja gelo, seja razão exposta, ou delicadeza de sentir. Sua poesia é feita de centelhas que ignoram a cronologia da dor.
A cristalização do verso leva a uma eternidade que consome a inocência. E não seria esse mesmo branco da matéria, apesar de tudo, essa busca da inocência?
Seu poema – repito – é feito de chispas, como se fossem grunhidos do primeiro homem diante do desconhecido. Ou o que denomina a impossibilidade ante o abismo, para ele a maior morte em vida . Tentando criar uma logística do desespero, dando o exemplo das formigas sobre o fosco espelho.
Sua visão recolhe o pessimismo, como se fosse a vida “distúrbio de moléculas”. Mas ainda se agarra numa possível esperança.
Em regra usa o verso curto, maleável , sabendo que o verso nasce do lançar de dados . Mas não abandona o talo da palavra definitiva, como a flor que se completa nas pétalas é definitiva. Igual ao ritmo que marca, de maneira indelével o poema.
Prevê a conservação dos corpos de seu verso no gelo. Como futura duração. Mas não consegue segurar o fogo da palavra que se desgarra como centelha. Ou a centelha que desencadeia o segredo da vida . Como se a sobriedade não permitisse a palavra – amor.
Mas em todo o livro se encontra essa busca, desde a impossibilidade até a paz e o silêncio, fronteiras do indizível. Ou mesmo uma aurora que seja apaziguada. Ou a ausência que contorna em sua névoa o círculo do mundo.
Esta poesia de razão e sonho, de ausência e encontro, de procura de unidade na inocência, é um grito de rebeldia , que tenta beber no divino ou eterno e não se contenta com o menos, ainda que a frieza da vida e o pesar do tempo a circundem. Merece ser lida esta poesia pela inquietação do mistério, sotaque próprio, ou a lucidez que desenha a possível serenidade de existir. O que não é pouco.
A cristalização do verso leva a uma eternidade que consome a inocência. E não seria esse mesmo branco da matéria, apesar de tudo, essa busca da inocência?
Seu poema – repito – é feito de chispas, como se fossem grunhidos do primeiro homem diante do desconhecido. Ou o que denomina a impossibilidade ante o abismo, para ele a maior morte em vida . Tentando criar uma logística do desespero, dando o exemplo das formigas sobre o fosco espelho.
Sua visão recolhe o pessimismo, como se fosse a vida “distúrbio de moléculas”. Mas ainda se agarra numa possível esperança.
Em regra usa o verso curto, maleável , sabendo que o verso nasce do lançar de dados . Mas não abandona o talo da palavra definitiva, como a flor que se completa nas pétalas é definitiva. Igual ao ritmo que marca, de maneira indelével o poema.
Prevê a conservação dos corpos de seu verso no gelo. Como futura duração. Mas não consegue segurar o fogo da palavra que se desgarra como centelha. Ou a centelha que desencadeia o segredo da vida . Como se a sobriedade não permitisse a palavra – amor.
Mas em todo o livro se encontra essa busca, desde a impossibilidade até a paz e o silêncio, fronteiras do indizível. Ou mesmo uma aurora que seja apaziguada. Ou a ausência que contorna em sua névoa o círculo do mundo.
Esta poesia de razão e sonho, de ausência e encontro, de procura de unidade na inocência, é um grito de rebeldia , que tenta beber no divino ou eterno e não se contenta com o menos, ainda que a frieza da vida e o pesar do tempo a circundem. Merece ser lida esta poesia pela inquietação do mistério, sotaque próprio, ou a lucidez que desenha a possível serenidade de existir. O que não é pouco.
Compondo o sítio arqueológico
A vastidão é uma pedra redonda e fria. Grande esfera onde deslizam e desabam as criaturas. O horizonte ‒ gelo intransponível. Daí esse tatear – essa procura. A obscura arqueologia de esconder-se. E, no silêncio, no cu desse branco profundo, aguarda, e se expande, e fulgura, o jardim das epifanias.
A vastidão é uma pedra redonda e fria. Grande esfera onde deslizam e desabam as criaturas. O horizonte ‒ gelo intransponível. Daí esse tatear – essa procura. A obscura arqueologia de esconder-se. E, no silêncio, no cu desse branco profundo, aguarda, e se expande, e fulgura, o jardim das epifanias.
Primeiro movimento
Afora a vastidão branca, nada mais resta a ser perseguido. O fogo — extinto. Saber-se de partida. Seguir o caminho do vau congelado. Segurar-se cego nas alvas tranças que pendem no absurdo.
Afora a vastidão branca, nada mais resta a ser perseguido. O fogo — extinto. Saber-se de partida. Seguir o caminho do vau congelado. Segurar-se cego nas alvas tranças que pendem no absurdo.
Primeiras escavações
É necessário buscar espaço para o silêncio — ocupar-se dele. Até que nada mais sobre solucionável pela palavra. Permanecia apenas um sibilo. Ria-se o vento... A vivacidade de cada gesto — retida — afastava a paz confortável do esquecimento. E toda delicadeza não removia a neve dos olhos... . A faca yanagui despregou da glande a gota de sêmen. (Primeiro fóssil.) Resgatou da solidão o vício cuspido.
É necessário buscar espaço para o silêncio — ocupar-se dele. Até que nada mais sobre solucionável pela palavra. Permanecia apenas um sibilo. Ria-se o vento... A vivacidade de cada gesto — retida — afastava a paz confortável do esquecimento. E toda delicadeza não removia a neve dos olhos... . A faca yanagui despregou da glande a gota de sêmen. (Primeiro fóssil.) Resgatou da solidão o vício cuspido.
Sobre anjos e blasfêmias
Existe uma parte que se quebra. E, sem ela, receia-se pelo fim do todo. (Dizem-no: extinto.) Reluzem desejos na convexidade da grande esfera. Por isso videntes não a deixam tocar. E a iluminam com a castidade de seus olhos puros e atentos. Deixam cair sobre ela o que há de imaterial nos anjos e estrelas. (A ausência de peso não trinca — não lasca —, não faz perecer a perfeição do que se enseja.) Só que um toque atrevido, por delicado que seja, faz desabar o enigma (Chamam a isso: pecado.)
Existe uma parte que se quebra. E, sem ela, receia-se pelo fim do todo. (Dizem-no: extinto.) Reluzem desejos na convexidade da grande esfera. Por isso videntes não a deixam tocar. E a iluminam com a castidade de seus olhos puros e atentos. Deixam cair sobre ela o que há de imaterial nos anjos e estrelas. (A ausência de peso não trinca — não lasca —, não faz perecer a perfeição do que se enseja.) Só que um toque atrevido, por delicado que seja, faz desabar o enigma (Chamam a isso: pecado.)
Portal dos anjos
Anjos ... Dou-lhes de presente minha sanidade. Sei o que me custará rolar a cabeça no acaso ... Anjos de poeta não implodem, esvaem-se da cabeceira da cama do menino. Retornam para a dimensão do sonho que se teve e se dispersou com a razão. Anjos ... Retribuo com o poema a vigília e peço que devolvam a Paulo o patibulum e a culpa.
Anjos ... Dou-lhes de presente minha sanidade. Sei o que me custará rolar a cabeça no acaso ... Anjos de poeta não implodem, esvaem-se da cabeceira da cama do menino. Retornam para a dimensão do sonho que se teve e se dispersou com a razão. Anjos ... Retribuo com o poema a vigília e peço que devolvam a Paulo o patibulum e a culpa.
Da construção de cidades e sentenças
Gélidos desfiladeiros ladeando avenidas... Estruturas metálicas — andaimes — espinha dorsal de enormes geleiras que sentenciam à morte os que ignoram a cronologia do desespero.
Gélidos desfiladeiros ladeando avenidas... Estruturas metálicas — andaimes — espinha dorsal de enormes geleiras que sentenciam à morte os que ignoram a cronologia do desespero.
Insignificância
Em que pese aos malefícios para o corpo, devemos arrastar a consciência de nossa insignificância O azul se dissipa em tons de desespero. Os segundos corrompem nossos sonhos, e a eternidade consome toda inocência. O céu conspira dentro de mim, ponto sujo no útero da neve.
Em que pese aos malefícios para o corpo, devemos arrastar a consciência de nossa insignificância O azul se dissipa em tons de desespero. Os segundos corrompem nossos sonhos, e a eternidade consome toda inocência. O céu conspira dentro de mim, ponto sujo no útero da neve.
A ordem natural
Vida, esse distúrbio das moléculas que se agrupam e se toleram; que despertam assombradas e se espantam no turbilhão do útero; que choram pela primeira vez, e se expandem à busca de esperanças; que se esquecem da inexistência de possibilidades e se acasalam; que se transformam em autômatos e digladiam com seus iguais, e se espantam, pela derradeira vez; que cambaleiam e tombam, e que não ouvem mais o desespero das carpideiras, quando, já inconscientes e verdadeiras, retornam ao estado natural de fonte energética do Universo.
Vida, esse distúrbio das moléculas que se agrupam e se toleram; que despertam assombradas e se espantam no turbilhão do útero; que choram pela primeira vez, e se expandem à busca de esperanças; que se esquecem da inexistência de possibilidades e se acasalam; que se transformam em autômatos e digladiam com seus iguais, e se espantam, pela derradeira vez; que cambaleiam e tombam, e que não ouvem mais o desespero das carpideiras, quando, já inconscientes e verdadeiras, retornam ao estado natural de fonte energética do Universo.
REGISTRO
Excertos do livro de poemas Glacial, de autoria de Jorge Elias Neto, editado pela Editora Patuá (2014), disponível na Amazon
Excertos do livro de poemas Glacial, de autoria de Jorge Elias Neto, editado pela Editora Patuá (2014), disponível na Amazon