Há 110 anos, vinha a público um dos livros mais estranhos da literatura brasileira. Seu título? “Eu”. Seu autor? Um paraibano magro, nascido em engenho de cana-de-açúcar, que tinha no magistério o seu ofício e na poesia o meio de traduzir as obsessões que lhe tumultuavam o espírito.
O “Eu” era estranho por romper com o código literário vigente no fim do século XIX. Esse código determinava, a par do exercício da arte pela arte, o gosto pela sugestão e a escolha de vocábulos “nobres”, cuja sonoridade era um afago aos ouvidos sensíveis. A tais ouvidos soavam bem “as vozes veladas, veludosas vozes” de um Cruz e Sousa, cuja harmonia das aliterações confirmava o apelo de Verlaine: “De la musique avant toute chose” (A música antes de qualquer coisa).
Esse ideal sonoro devia se coadunar com um vocabulário que a tradição reconhecia como poético, e o livro do paraibano afrontava essa pretensa união. Vinha recheado de vocábulos ora vinculados ao domínio da ciência, ora pertencentes ao registro coloquial – e tudo isso permeado pelo mau gosto de escolhas escatológicas que tinham no verme (“esse operário das ruínas”) seu símbolo maior.
O “Eu” causou estranheza, mas não repúdio. Foi mal compreendido por alguns, mas exaltado por outros, que perceberam na obra as marcas de uma poesia diferente. Entre os que o louvaram na primeira hora estavam Antônio Torres, Agripino Grieco e Órris Soares, que em 1920 acrescentou à obra as Outras Poesias.
Um dado curioso e incompreensível é que, apesar de se inserir ostensivamente na modernidade, o “Eu” foi ignorado pelos modernistas da Semana de Arte Moderna. Se entre as propostas do Modernismo estava a de uma poesia liberta do academicismo e próxima da oralidade popular, soou estranho que os próceres do movimento deixassem de lado uma obra em que esses traços eram marcantes.
Poucos livros da nossa literatura afrontam o academicismo e valorizam a dicção popular como o “Eu”. Nele são patentes o grotesco, traduzido num mau gosto de cunho escatológico, e um léxico no qual se destacam vocábulos associados à experiências do dia a dia. A presença desse vocabulário se deve, em grande parte, a um traço peculiar ao estilo de Augusto: a representação da angústia espiritual, ou metafísica, por meio de referências corporais.
Em vez de vagas alusões à perda do Absoluto, ou à incapacidade humana de apreender o mistério cósmico, o que se vê no livro são imagens de um corpo maltratado por pesos e lacerações. Isso não é de estranhar, pois a agressão ao corpo é tradicionalmente o meio de o melancólico purgar a sua culpa. Infligir-se dor, conforme testemunha o comportamento de mártires e santos, é uma forma de reagir às armadilhas do desejo. Lembre-se, com Freud, que a rejeição à sexualidade é uma das principais características da melancolia.
Uma questão que frequentemente se coloca é a da filiação de Augusto dos Anjos no quadro da nossa literatura. Preferimos, seguindo Alfredo Bosi, considerá-lo um pré-moderno, embora reconhecendo os traços simbolistas das suas primeiras produções.
Ao selecionar os poemas que comporiam o “Eu”, o autor preservou apenas um poema vinculado a esse estilo de época: o soneto “Vandalismo”. Os outros ele deixou de lado, e os críticos acabaram lhe dando razão; embora tecnicamente bem-feitos, eles pouco acrescentavam à obra do paraibano. Seguiam uma temática comum à época e apresentavam um estoque de imagens que estavam longe de caracterizar o Augusto dos Anjos que viríamos a admirar.
É impossível não reconhecer pelo tom e a linguagem a discrepância entre “Vandalismo”, que transcrevemos abaixo, e as demais composições do “Eu”:
Meu coração tem catedrais imensas,
templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos templários medievais,
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
O poema reflete um estado de espírito típico do final do século 19, quando as ideias científicas advindas do Positivismo ameaçavam as crenças metafisicas. Augusto voltaria a tema semelhante em “A ilha de Cipango”, mas com uma dicção pré-moderna.
Por que o poeta manteve “Vandalismo” no “Eu” apesar do seu claro acento simbolista, que se evidencia no léxico raro, precioso, próximo da “estética da sugestão”? Esse léxico, afinal, está muito distante do vocabulário prosaico e “científico” que lhe permeia a obra.
A manutenção do soneto não deixava de ter um valor simbólico. Representava o rompimento do poeta não apenas com as suas crenças (“quebrei a imagem dos meus próprios sonhos), como também com os princípios estéticos que de início nortearam suas produções.
Se “Monólogo de uma Sombra” antecipa alguns dos temas caros a Augusto (como a culpa melancólica, a contestação do Positivismo e a rejeição à sexualidade), “Vandalismo” é inegavelmente um momento de ruptura. Há nele, graças sobretudo à força das aliterações, uma rispidez expressionista que vai se constituir numa das marcas do seu estilo. Uma rispidez que confirma a “poética por estampidos” apontada por Manuel Bandeira.
A iconoclastia que o eu lírico refere no último terceto se reforça, fonicamente, nos “gládios” e “hastas” que se “erguem” para destruir um ideal. Um ideal não religioso, mas estético, representado pela concepção da poesia como pura música, evanescência que tranquiliza o espírito.
Os versos finais constituem uma antítese à estrofe imediatamente anterior, na qual se fala em “templos claros risonhos”, e soam como o anúncio de uma nova opção estética. Uma opção que fará com que no “Eu” prevaleça não a claridade, mas a Sombra. Nele, se algum riso existe, é de tristeza, ironia ou sarcasmo.