O dia de folga me permitiu um percurso mais demorado pelas trilhas infinitas da internet. A que acabo de percorrer levou-me a um endereço impresso na memória coletiva de João Pessoa, a Capital da Paraíba: o prédio da Rua da Areia onde funcionou a extinta fábrica de vinhos Tito Silva. Ali entrei por corredores do acervo fotográfico do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan.
Impossível pôr os olhos nas fotografias ali exibidas sem que me venham à lembrança os versos do poeta Américo Falcão impressos no rótulo do Vinho Celeste:
“O beijo que tu me deste
tinha o sabor inocente
que uma taça de Celeste
deixa nos lábios da gente”.
Aliás, o poeta também me remete à figura impressionante do paraibano Mário Moacyr Porto. Falou-me, este último, em entrevista para a Revista “A Carta” (tão extinta quanto o vinho de caju), de sua primeira desilusão amorosa.
A menina a quem entregara o coração, quando mal entrava na adolescência, o trocara por outro. Decidiu vingar-se por meio do jornal de estudantes destinado ao público da Festa das Neves, onde pretendia publicar uma, ou duas quadrinhas. Mas emperrou nos dois primeiros versos:
“Não estou ligando importância
a quem não gosta de mim”.
O jeito foi se socorrer do dr. Américo que, então, dirigia a Biblioteca Pública. Disse ao que ia, arrancou um sorriso do poeta e recebeu, de pronto, isto:
“Um trovador que padece
disse numa trova dolente
que a gente nunca esquece
de quem se esquece da gente.
Não creio em tal e ofereço
esta verdade sem fim.
O mais depressa me esqueço
de quem se esquece de mim”.
“Veja só a minha desonestidade intelectual. Pus o meu nome embaixo e publiquei o poema que fez um sucesso danado”, contou-me, às gargalhadas, o velho Mário, o homem a quem a Paraíba conheceu como reitor da UFPB cassado pelo Golpe de 1964, desembargador e empresário de peso. A scheelita que a Mineradora Tomaz Salustino, sob sua direção, extraía do Rio Grande do Norte, era vendida na Europa.
E eu me pergunto: que tempo era aquele em que a poesia encontrava abrigo em selo comercial e poetas socorriam meninos apaixonados?
Voltemos, porém, aos vinhos de caju. Diz-se que a Tito Silva – implantada em 1892 com o nome do criador – chegou a exportá-los, largamente, para a Europa e os Estados Unidos, até a 2ª Guerra Mundial atrapalhar as vendagens.
Imagens ▪ Acervo IPHAN
A receita, guardada a sete chaves, fora aprendida com imigrantes europeus nas serras de Areia, a terra de Tito Silva, jornalista, também, nas horas vagas.
Nos tempos áureos, o vinho Celeste ostentava diplomas internacionalmente invejados. Citem-se os Prêmios de Turim (1910) e Bruxelas (1911). Havia, ainda, o Lágrima de Ouro, de grande consumo. O fabrico quase artesanal, a escassez progressiva da matéria prima (derrubavam-se cajueiros para fazer carvão), a elevação dos encargos tributários e, sobretudo, a perda do mercado exterior terminariam por sepultar todo esse negócio.
O velho prédio da Rua da Areia foi desapropriado pelo Governo do Estado em 1984, praticamente em ruinas, mas restaurado a partir de outubro de 1997. A conclusão desse trabalho deu-se em 2003, graças à parceria com o Iphan e o pessoal da Escola-Oficina que, hoje em dia, mantém, ali, a sua sede.