Para as Mulheres Velhas. E as Jovens também.
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?Sempre que leio esse poema de Cecília Meireles sinto um soco no estômago. Assim como ela, também me pergunto por esse espelho mágico em que se perdeu a minha face. Com o passar dos anos, é difícil se reconhecer nas dobras, nos encolhimentos, nos desbotados ou arregalados espantos diante do tempo.
No livro 60tão, organizado por Ivana Arruda Leite, vários artistas de áreas diversas pensam sobre o que são e como estão lidando com o fazer 60 anos.
R.G.
A cara não se rende ao instante da foto
Não fui idêntica a mim.
Eu sou
O nome escrito a giz à margem das calçadas
Sou a página branca
E sou as letras
Que escreveram nunca.
Meu retrato é um mapa
De fronteiras incertas
Pequeno
Para tantos acidentes geográficos.
Assim também como Maria Rita, sinto-me página em branco, com tal mapa de fronteiras incertas! E cada vez mais acidentado! E foi pensando nesta cara, que não se rende ao instante que me pus, certa vez, em pose para umas fotos/portraits. Mas antes que a máquina disparasse, fiquei a me perguntar quem eu era, para que pudesse sair na foto como um rosto que não tivesse se perdido nas nódoas do meu próprio acaso.
São tristezas e alegrias concomitantes. Como dizer esse paradoxo somente no click Blow Up? Como me apresentar ao distinto público? Percebo que os anos passam/ram, e onde foi mesmo que perdi o meu rosto? Um olhar mais sensual? O canto da boca irônico?
E com os cabelos vermelhos e afogueados, mais escuros e com mechas, fui pinçando uma ruga aqui, uma gordura acolá, uma limitação física, muitas emocionais, um corpo que cai — sem direito ao glamour do próprio filme. Dói o pé! O acordar é sempre manso. E incrédulo. Nada de correria, pois nada é para já! E na verdade, queria que o sonho continuasse. Ouvindo John Lennon , se possível.
Difícil envelhecer? Óbvio. Perdemos não só a juventude, mas a importância no meio em que vivemos. Vivi de perto a velhice da minha mãe e confesso que não gostei muito do que vi. No ocidente, ficar velho já é uma morte anunciada. Ao contrário de outras culturas, mas quais quanto mais velho, melhor! Mais sábio e mais respeitado. Hoje, então, quando a juventude e o efêmero importam mais que tudo, o que teria de dizer alguém de cabelos grisalhos?
Minha geração está velha! Ou entrando na velhice. Sim, não gosto de outros termos. Mas quero o termo também associado a movimento, à vida, à criatividade e ao amor, claro!
A velhice vai chegando sorrateiramente. Um cabelo fora de ordem se constata; aquela saia curta já não pega bem; aquele olhar mais em névoa; uma certa irritação ao ver a irreverência jovial; uma comida que já não dá para exagerar; um copo a mais; as olheiras; uma impaciência tardia; algumas certezas e muitas dúvidas. Mas não existem mais tantas dúvidas em relação à vida — é chegada a hora em que a finitude começa a bater à porta.
Outras se refugiam no em busca do corpo perdido. E vamos a la playa! E vamos ao esteticista, academia, ortomolecular, tudo muito além de uma simples busca pela saúde, mas uma busca do poder que o corpo lhes dá. Uma busca não mais pela beleza transformada, mas pelo viço e vigor perdidos. É uma fórmula como tantas outras. Muitas mulheres vão em busca do poder do intelecto, outras se encolhem nas vidas dos outros, dos filhos e dos netos. Dessa escolha eu particularmente não gosto muito, pois uma vida toda minha é soberana. Filhos e netos que venham, mas para iluminar e complementar um percurso e não como uma única saída para o meu vazio existencial.
Katherine Mansfield, grande escritora Neozelandeza, no seu conto The Canary, fala que existe algo de triste na vida e que é difícil explicar o que é. Relata que essa tristeza não é toda a miséria de que já sabemos, como a doença, a pobreza e a morte. É algo diferente, que está lá bem no fundo, à nossa espreita, e que faz parte de todo ser humano, assim como a própria respiração. O que nós, leitores, podemos interpretar é que essa tristeza atávica talvez seja a própria inevitabilidade da morte.
Clarissa Pinkola Estés, autora de As Mulheres que Correm com os Lobos — livro indispensável na vida de toda mulher — também tomou esse tema para si,
“O lugar que almejamos é a terra onde os humanos ainda são tão perigosos quanto divinos, onde o que é derrubado cresce de novo, e onde os ramos das árvores mais velhas florescem por mais tempo. A mulher oculta conhece esse lugar. Ela conhece, e você também.”
Fico a pensar qual seria o meu lugar de florescimento? Ela continua:
“Em todas as mulheres, sobretudo quando entram na maturidade, instala-se uma força subterrânea e invisível que se manifesta por meio de comportamentos inesperados, arroubos de energia, intuições perspicazes, ímpetos apaixonados: um impulso arrebatador e inesgotável que as impede obstinadamente rumo à salvação, à reconstrução de toda e qualquer integridade despedaçada. Como uma grande árvore que, quando ameaçada pela doença, golpeada pela intempérie, agredida pela fúria do homem, se recusa a morrer e, milagrosamente e com enorme dose de paciência e persistência, continua a nutrir-se através das próprias raízes, restaura-se e renasce para manter o próprio espírito vital de forma a poder gerar novos frutos, aos quais confiará esta herança inestimável.”
Sejamos árvores pois! Restauremos nosso espírito vital!
“e para quem a velhice não é complicada? para quem tem projetos de vida ou investiu em outros capitais. por exemplo, para quem trabalha com a criatividade, como professores e escritores. muitos descobriram na velhice a sua vocação”.
Como exemplo, Miriam cita Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Rita Lee e Marieta Severo, como os “sem idade”, que fazem parte de uma geração que não aceitará o imperativo seja velho! Pelo contrário, eles pulsam e pulsam latejantes de vida.
O crítico literário e escritor José Castelo, também no livro 60tão, fala da sua vivência:
“Sessenta anos parecem ter a brutalidade dos substantivos, puros e sem nuances. Uma mesa é uma mesa, não precisa de qualificações. Um cão é um cão, não precisa de um pedigree. Uma montanha é uma montanha, e isso lhe basta. Sessenta anos; será que isso não me serve?. E eu fico me perguntando sobre mesa, cão e montanha??? Se ranjo, se lato, ou se me sinto imponente... assim, simplesmente."
Por fim, leio o texto “A vida só começa com a memória”, da minha querida amiga Sarita Vieira, em Impermanência (organizado por Regina Carrancho, 2014), e me vejo literalmente nas memórias de Selma, a protagonista/narradora (talvez uma persona da própria Sarita), nesse passeio pelas lembranças de alguém que se encontra ímpar e não tem com quem jogar frescobol na praia.
Selma não quer relembrar do que havia vivido. Dói a ausência de tanta vida. Ela constata sua solidão e também as delícias vividas, sozinha. Que maravilha se largar no sofá! Devagarzinho se dá conta de que mantém a chama da vida. Compra flores. Arruma as frutas na mesa. Ouve Nina Simone . Antes dos 50 tons de cinza. Eu também Selma: I put a spell on you! Sua vida estava ali e pronto!
Assim, não mais de insustentáveis levezas, mas de rostos, retratos, vincos, sabedorias, pequenos êxtases, cantos, movimentos, impermanências, solidão, comportamentos inesperados, alguns arroubos, e ainda, uns poucos ímpetos apaixonados, vou descobrindo caminhos e pedregulhos da minha bela velhice of my own!
"Se não foste feliz quando jovem, certamente que tens agora tempo para o ser."
Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir