Pequenino e elétrico, o pintor paraibano IVAN FREITAS (1932—2006) formou vivo contraste com a própria obra. Não raro era visto em estado de mal disfarçada irritação e impaciência, como se acabado de constatar que ele e aquilo que mais procura divergem de lugar, nem sequer estão próximos, nem há muito tempo antes que tenha de empreender a busca inevitável.
Quando vinha à Paraíba, dizia a quem o recepcionasse que tinha um itinerário de trilhas ou ruas de um bairro antigo (gostava particularmente de Tambiá) para seguir; uma linha de praia (quase sempre Manaíra) a ser palmilhada no pé,
Talvez, por razões análogas, o pintor paraibano dispensava a companhia de quem se oferecesse para acompanhá-lo: queria estar só nessas andanças tão misteriosamente pessoais, a fazer com passos normalmente rápidos, mas estancantes, às vezes, diante de um velho pórtico ou janelão em ruínas, por trás dos escombros de algum jardim de antigas luas apagadas, onde por instantes se detinha sem, no entanto, conseguir conceber sua visão em termos que fossem meramente sócio-econômicos, ou segundo algum tipo de historicismo nostálgico, capaz de fungar suas lentes – sempre tão objetivas para o trabalho –, avaliando porem aqueles estragos por uma ótica que considerava o abrasamento inapelável entre corpos que giram no espaço-tempo, cuja entropia natural pode tanto criar buracos negros nas estrelas quanto provocar danos consideráveis num tijolo de oito-furos. Se houvesse algum tipo de sentimentalismo ali, não seria de fácil tradução, e, por favor, nada de ideologias com ele.
Passava registrando nas pedras da rua a mancha inescorraçável provocada por um chover secular de jambinhos podres; parecia às vezes querer fotografar o tempo pelo rastro impiedoso deitado nas coisas: no cais abandonado uma espinha de ferro esquecida de seus trens mergulha sem volta na terra. O final interminável do tempo soçobrando num grau maior de desordem,
Ivan Freitas
O que nos chegava de sua Arte, entretanto, expressava algo diverso do que comumente poderíamos atribuir àquele Artista inquieto, de humor difícil: era quase sempre o registro de paisagens naturais ou urbanas, onde, por uma conjuração de ciência e tecnologia, o planeta terra havia entrado, finalmente, numa grande era de paz entre homem e natureza; marinhas tranquilas, de cochilantes marés, perpassadas de luminescências e bonomia atmosférica, céu de ligeiras ocorrências físicas, vibrações Hertzianas.
Ivan Freitas
Pintava relíquias arquitetônicas na mudez intocada de seus pátios vazios, cujas torres e capitéis retorcidos dão de encontro ao mesmo céu exemplar, com ênfase na retidão da luz. Aqui e ali uma pequena mecha de nuvem se assanha da cabeleira como se quisesse depreender-se pela própria ação dos revérberos nela visíveis, mas é apenas para dizer que é uma nuvem, e, como tal, comete rebeldias; uma chuva sobre o canavial chovia de apenas uma nuvem, num concerto de várias, como se um filósofo Sufi da índia tropical tentasse dar um exemplo de chuva para beduínos do Magreb, e era como se o próprio Ivan houvesse bombardeado aquela nuvem com uma contra-carga elétrica de efeitos gráficos, ùnicamente para produzir um módulo de precipitação pluviométrica, e fornecer dessa forma uma condição mínima necessária para o evento ocorrer de forma exemplar, porém sem empanar a luminosidade no resto da tela; uma nuvem partida ao meio podia ser o pretexto para uma onda energética de Plank,
Ivan Freitas
Para ele era indiferente que pintasse o rio Sanhauá ou as praias da costa, ou ainda os canaviais a oeste: tratava-se sempre de um páramo, uma linha reta de horizonte sobre a qual iria traçar suas inevitáveis intersecções luminosas; também estava se lixando em saber se as noções científicas de que se valia eram pertinentes à física clássica, ou, quântica. Talvez seu trabalho se enquadre melhor naquela primeira designação, enquanto ele próprio, com seu trato imprevisível, seu permanente desassossêgo íntimo, tinha um comportamento mais assemelhado com o das partículas subatômicas. De qualquer forma, o que traçava, na verdade, solitário no ateliê da Lapa, era uma fusão de naturalismo pictórico com conceitos abstratos da ciência, uma coisa aparentemente difícil para outro que não ele, mas que foi, acima de tudo, a experiência muito bem sucedida de quem criou uma simbologia dos procedimentos exatos. Talvez por dominar uma técnica exata. Uma Arte exata.
Ivan Freitas em seu ateliê, no Rio de Janeiro ▪ Foto Jeanine Gall ▪ facebook